domingo, 13 de janeiro de 2008

Quarenta e oito horas

Quarenta e oito horas
Anónio Barreto

A decisão de ratificar o tratado de Lisboa na Assembleia da República, com recusa do referendo, foi um belo exemplo de não cumprimento de promessas, de cinismo político e de ocultação de evidências. Sócrates chegou a dizer, pestanejando, que "este tratado não tem nada a ver com o anterior". E que as suas propostas eleitorais e de programa de governo apenas se referiam à hipótese do anterior tratado constitucional. Estava pois livre de compromissos e apenas decidiria em função dos interesses nacionais, sem sequer se sentir influenciado pelos governantes alemães, ingleses e franceses que não queriam referendo; nem pressionado pelo Presidente da República; nem desmotivado pela decisão prévia do PSD. Como, por outro lado, sabia "que 90 por cento dos deputados eram a favor do tratado", concluiu, com uma pirueta lógica arrepiante, que não valia a pena colocar a pergunta ao eleitorado! Ele também sabia que a maioria dos portugueses diria sim ao referendo, mas receava que os outros povos europeus, depois de ver os portugueses, seguissem o exemplo. Em consequência, os governos convocariam os respectivos referendos. Ora, havia o risco de alguns dizerem que não. A terminar: Portugal não poderia ficar na história como o país que, depois de ter feito o tratado, dera cabo dele! Todo o seu raciocínio é megalómano e pueril. As suas demonstrações não têm lógica. Das premissas, não resultam as conclusões. Os factos não são os que ele recorda. A cronologia não é a que ele invoca.
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O segundo grande acontecimento da semana foi o da decisão de construir o aeroporto em Alcochete, afastando a Ota. O relatório do LNEC fora entregue ao primeiro-ministro dois dias antes. Bastaram-lhe quarenta e oito horas para tomar uma decisão firme. Ota já foi! Alcochete será! A ponte sobre o Tejo, de Chelas ao Barreiro, vem por acréscimo. Milhões de contos de estudos e projectos, dez anos de trabalho duro e trinta de especulações foram varridos pela capacidade de decisão fulminante do homem que nos governa. A decisão é "prévia", figura estranha para gesto dramático. É também "preliminar", eufemismo para uso em Bruxelas, dado que estas decisões são geralmente precedidas, não seguidas, de estudos de impacto ambiental. Tudo o que se disse antes, as certezas inabaláveis de Sócrates, as anedotas de Mário Lino e os sólidos estudos preparatórios feitos pelas mais idóneas entidades técnicas do mundo foi ultrapassado por uma rápida leitura de um "sumário executivo" e por quarenta e oito horas de prazo estudado. Vale a pena ressuscitar frases e pensamentos, de um e outro, de 2007. "Quem tiver ideias contrárias às do Governo, relativamente ao aeroporto da Ota, presta um mau serviço ao país" ! "A Ota é a única solução"! "A decisão de construir na Ota é irreversível"! Só para refrescar a memória.
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Os sistemas de decisão vigentes em Portugal são tais que estes procedimentos, recheados de demagogia, erros, mentiras e disparates, são possíveis e não são alterados. Estuda-se pouco, estuda-se mal e estuda-se secretamente. Mas, sobretudo, estuda-se apenas o que se quer fazer. Primeiro decide-se, depois estuda-se. E só se estuda o que confirma a decisão. E pagam-se os estudos que a fundamentam. O Governo não é regularmente assessorado por gente capaz, politicamente independente e técnicamente competente. O Governo não acredita nas virtualidades do debate público permanente e da libertação de toda a informação necessária´´´´´a qualquer decisão. Até neste caso, aceitar-se-ia, por exemplo que os relatórios do LNEC fossem escrutinados e postos à prova do debate público durante umas semanas ou uns meses. Mas tudo isso seria pôe em causa a "determinação" do Governo, o seu machismo teimoso. São estes procedimentos, a acrescentar à megalomania dos grandes projectos, que fazem com que as obras públicas sejam o que são: prazos dilatadsos, acidentes sem responsabilidade, espiral de custos para o Estado, "trabalhos a mais" e emaranhado de interesses privados e públicos.
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Ainda agora, com a ponte de Chelas para o Barreiro, o facto de o presidente da Lusoponte ser o antigo ministro das Obras Públicas, Ferreira do Amaral, parece não perturbar ninguém. Mas a verdade é que foi ele o signatário, por parte do governo, do contrato com a Lusoponte que prevê que esta tenha o exclusivo dos direitos de atravessamento do Tejo (de Vila Franca ao mar), o que significa que o Estado tem que a indemnizar. Mesmo que a honestidade das pessoas seja a toda a prova, a certeza é a de que há conflitos de interesses, há promiscuidade e há ligações perigosas entre o público e o privado. São gestos como este que mostram como é frágil o Estado português. Como são atrevidos os governantes.
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Num caso e noutro, o referendo e o aeroporto, os governantes mentiram, desdisseram-se, negaram o que tinha afirmado, mudaram de opinião e de certezas, voltaram atrás, disseram que não tinham dito, não era bem assim, só queriam dizer que era isto e não aquilo... Neste exercício de garantir o que não é evidente para ninguém e de negar o que disse e prometeu, Sócrates foi absolutamente excelente. Revelou a convicção de um vendedor de persianas. Portou-se com a inocência de um escuteiro. Sócrates está convencido de que pode vender o que quiser a quem quer que seja. Basta ele falar, controlar a informação, negar a evidência, garantir as suas certezas e elogiar o produto!
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Como os governantes não mudam de estilo nem de sistema, a não ser que a isso sejam forçados, já não vale a pena esperar pelos efeitos correctores desta semana nos seus comportamentos. Mas a população assistiu. Viu. Pode tirar conclusões. Se, como os animais, os homens aprendessem com a experiência, esta semana teria sido gloriosa. Ficaria na história como um dos momentos altos da aprendizagem da arte de ser governado. Perder-se-ia rápidamente a confiança em Sócrates. Este Governo teria o desfavor público. A competência técnica, a seriedade e as promessas do Governo passariam a ser motivo de gargalhada e desprezo. Infelizmente, parece que os homens em geral e os portugueses em particular não são como os animais. Não aprendem. (Público - assinantes)
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Nota do Papa Açordas: Um excelente artigo de António Barreto e, de leitura obrigatória, para aqueles que ainda têm dúvidas...

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