domingo, 16 de dezembro de 2007

O CIRCO

O CIRCO

«Vivemos dias de verdadeiro circo político. Eu sei que esta é a época dos circos descerem à cidade, mas ao menos que tragam leões e trapezistas, elefantes e malabaristas, e não este estendal de vazio e demagogia que por aí tem andado à solta entre os nossos queridos dirigentes europeus.

José Sócrates tem vivido noutro planeta - lá onde ele é um grande estadista e onde, de braço dado com Durão Barroso, representou uma Europa onde já ninguém se revê, o lugar do menor denominador comum da política. No fim-de-semana passado tivemos a Cimeira UE-África e a pomposa ‘Declaração de Lisboa’ - coisa ‘histórica’ para Sócrates, que se vê a fazer História a cada passo, e na realidade uma Magna Carta de inutilidades e hipocrisias. Retive, em particular, a imagem de Mugabe a chegar ao pavilhão do encontro, deslizando em tom arrogante entre seguranças e curiosos, e cumprimentando à passagem o secretário de Estado João Cravinho - (o homem que mais trabalhou para que ele estivesse presente e a cimeira se realizasse) - sem sequer o olhar e sem sequer parar para a mão estendida. E retive as imagens do estimável coronel Kadhafi, que noutros tempos mandava pôr bombas em aviões chacinando centenas de inocentes, e agora transformado em respeitável estadista, com aspecto de palhaço rico saído dos armazéns, a acenar com milhões para distribuir em negócios na Líbia, em troca de ser recebido na Universidade para debitar livremente as maiores asneiras e receber para o beija-mão na tenda do seu circo alguns escolhidos homens de negócios, salivando de gula. Uma “parceria”, uma “coisa histórica”, anunciou Sócrates à nação e ao mundo. Os tão celebrados direitos humanos passaram ‘agora’, por artes da ‘declaração de Lisboa’, a ser ‘património universal’.

Traduzindo por miúdos e acredite quem quiser, os sobas africanos vão dar mais uma oportunidade às multinacionais europeias de concorrerem com os chineses no saque das riquezas naturais de África e gente como Mugabe, Kadhafi ou o bandido do Sudão vão passar a comportar-se como bons rapazes. Uma viragem histórica. E foi Sócrates que a conseguiu.
Anteontem foi outro momento histórico: a assinatura do ‘Tratado de Lisboa’, a versão corrigida da Constituição Europeia. Ninguém o leu, ninguém o vai ler, ninguém o vai referendar. Basta-nos que os nossos estimados governantes europeus, lá no assento etéreo onde subiram, nos garantam que é para nosso bem e que, subitamente preocupados com a contribuição dos seus infindáveis voos para o aquecimento global, tenham aceite, nesta ocasião, partilhar alguns aviões entre eles, de modo a minimizar os danos causados pelas 512 toneladas de CO2 que se estima que eles tenham causado com a assinatura do Tratado nos Jerónimos.

E, assim, José Sócrates cumpre, com brilhantismo, esta maratona de seis meses de presidência europeia. Não duvido por um instante que o homem tenha dado o melhor de si, que se tenha esfalfado por esses céus da Europa e do mundo a levar a mensagem da Europa a todos os descrentes e que, no final, sem dúvida que ele e Portugal passaram a ser bem mais conhecidos e prestigiados. Sosseguemos, pois. Até porque, por via do Tratado agora assinado, nunca mais nos volta a calhar este brinde do bolo-rei europeu.

Sócrates vai, então, descer à cidade, onde o espera uma barragem de chatices a que já não estava habituado. Greves na Função Pública, patrões que esperam ‘apoio’ do Governo para cumprirem os acordos que assinaram com os sindicatos, empreiteiros que desesperam por despesa e obras públicas, o sarilho da Ota para resolver, o maior banco privado nacional em continuado e alegre processo de implosão, o ministro das Finanças que, se não o seguram, privatiza tudo, até o ar que respiramos, para se ver livre do défice, e uns malucos que, não vendo cimeiras nem Expos no futuro próximo, já nos ameaçam com um Mundial de Futebol para que não se perca este saudável hábito das grandes festas públicas com a factura a debitar às receitas do IRS.
Há também outras pequenas questões no horizonte que, a muitos vão afectar, mas a Sócrates pouco dirão - a política moderna é a gestão dos grandes dossiês e jamais a consideração dos problemas concretos do dia-a-dia das pessoas. A partir de Janeiro, vamos ter a tão desejada caça aos fumadores, com a prestimosa e esperada colaboração da denúncia popular; vamos passar a escrever em brasileiro - uma súbita lembrança do ministro Amado, no meio do frenesim europeu; e até consta que, sob os altos auspícios da nova polícia ASAE, a porcelana para os cafés e chás e o vidro para as restantes bebidas vão ser higienicamente substituídos por copos de plástico universais (enquanto que o senhor que dá pela alcunha de ministro do Ambiente, depois de ter dado o melhor de si para que o mar não engolisse um restaurante da Costa de Caparica, estuda agora uma nova ‘causa’, qual é a de tributar os sacos de plástico nos supermercados).

E temos também uma guerra civil entre marginais da noite do Porto e de Lisboa. Aqui, Sócrates tem já à perna Paulo Portas, que vive há anos a tentar convencer-nos de que Chicago-30 é aqui e agora e que jura que com mais uns quantos GNR distribuídos pelas aldeias e vilas e uns PSP contratados de fresco e mandados para as ruas, a coisa se resolve. E tem, claro, o ‘novo PSD’ a garantir que, se os seguranças do Porto se matam uns aos outros e a polícia assobia para o ar, a culpa é do Governo. Mas, por entre a demagogia histérica da oposição, o primeiro-ministro tem, de facto, um problema concreto para resolver: perceber porque é que a polícia nada faz para deter umas dezenas de marginais que, ao que parece, toda a gente sabe quem são, onde param e o que preparam. A menos que se queira entrar pela via da desculpabilização tão habitual nos portugueses - faltam meios, faltam carros, é o novo Código de Processo Penal que não deixa prender os bandidos, e outros dislates impúdicos que tais - Sócrates tem de chamar os responsáveis pela polícia e perguntar-lhes o que se passa e porque não se passa nada. Exigir-lhes explicações e resultados. Para que não suceda como no caso McCann onde a PJ, com a prestimosa colaboração de alguns jornalistas, passou meses a insinuar que eles tinham morto e escondido a filha, e agora não tem provas de nada nem faz ideia do que se passou.

Eis o circo que espera o primeiro-ministro, depois do regresso da sua triunfal digressão com o Grande Circo Europeu. Vai encontrar um país em autogestão, descrente e assustado com o futuro - excepção feita aos mesmos de sempre, que espreitam a oportunidade de regressar ao «business as usual» dos negócios cozinhados com o património público: a água, Alqueva, as estradas, a rede eléctrica, a Galp, a TAP, a navegação aérea e aeroportos, etc., etc. (Quem não acredita em bruxas, lembre-se da extraordinária e reveladora carta que o comendador Amorim dirigiu ao ministro da Agricultura do anterior governo, oferecendo-se para privatizar a Companhia das Lezírias, nos seus termos e a seu favor).

Daqui até 2009, José Sócrates está de regresso a Portugal e sem fuga possível. Seja bem-vindo, espero que goste.» [Expresso assinantes]

Parecer:
Miguel Sousa Tavares dá as boas vindas a Sócrates no seu regresso à realidade de Portugal.

In O JUMENTO, 16-12-07

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