O circo desceu à cidade
António Barreto
Trapezista andróginos, papagaios alfabetos, palhaços pobres e ricos, tigres amestrados, magos e contorcionistas: há de tudo. Vieram por três dias, a cidade ficou em quarentena e, ansioso, o mundo espera por resultados. A meio da semana, tudo recomeça, mas só com um grupo selecto que vem assinar nos Jerónimos a inútel constituição europeia alcunhada de Tratado.
Cimeira, Trtado, Declaração e Estratégia: todas de Lisboa, para engrandecimento da pátria! Ao lado do Presidente da União Europeia, português de lei, o presidente da Comissão, outro português de gema. Portugal, Lisboa e Sócrates saem deste rodopio famosos, prestigiados e com uma nova projecção internacional. Parece que o papel de Portugal no mundo foi assim reforçado. Que muitas novas oportunidades serão criadas. E que se deu um passo essencial na construção da paz e da segurança mundiais.
Será necessário, para obter segurança, dialogar com criminosos, apertar a mão a torturadores, tratar quaisquer déspotas de democratas, esquecer guerras e fomes, deixar entre parêntesis a corrupção, alimentar a cleptocracia e debitar, com ar confiante, longos discursos de lugares comuns optimistas congratulatórios? Será que o preço que tem de se pagar pela paz inclui a criação e manutenção de uma Nomenclatura internacional imune, impune e "offshore"? Será que o próprio desta casta é o hotel de cinco estrelas, o caviar, os vintages caríssimos, a trufa branca e os aviões transformados em lupanares de luxo?
A cidade de Lisboa, como qualquer outra nas mesmas circunstâncias, ficou em estado de sítio. Em qualquer canto da cidade, de repente, uns nervosos políciasmandam parar carros e desviar transeuntes, ou atiram para as bermas tudo o que vive, a fim de dar lugar a luzídias comitivas de topos de gama barulhentos e sirenes emproadas de importância. Estivéssemos nós sob ameaça nuclear e a diferença não seria grande: perímetros proibidos, áreas de segurança máxima, locais protegidos pela Armada e pela Força Aérea, centenas de gorilas mais ou menos disfarçados e milhares de soldados e polícias nas esquinas ou pendurados nos telhados. Dezenas de carros blindados transportam estes senhores do pavilhão para o hotel, do centro de congressos para a sala de jantar. A distância que os separa de pessoas normais mede-se em centenas ou milhares de metros. Têm medo de tudo, dos colegas, dos terroristas, dos opositores, dos criminosos, dos acidentes e das pessoas em geral. É cada vez mais o retrato da vida política actual: longe de todos, com receio de tudo. Mas com infinita arrogância.
É triste o estado a que chegou o mundo! Triste e irreversível. Se mudança houver, será ainda para pior. Os políticos vivem, deslocam-se, governam, reúnem-se e decidem como se fossem perseguidos, como se estivessem permanentemente cercados. Políticos, estrelas de cinema, bilionários e chefes da Máfia vivem assim. Rodeados de guarda costas e protegidos por exércitos, são acompanhados por enormes comitivas a que não faltam médicos, enfermeiros, ambulâncias, cozinheiros, provadores, jornalistas e escort services. Alguns não dispensam astrólogos, feiticeiros psicólogos e personal trainers. Os que, a exemplo de Sócrates, exigem correr ou fazer exercício mandaram reservar partes da cidade para poderem queimar toxinas e ser filmados em privado. Os políticos e seus poderosos equiparados vivem num mundo à parte, têm a sua própria geografia e governam-se pelas suas leis. De vez em quando, para serem filmados, esbulham o espaço público. A democracia trocou o Fórum e a Assembleia pela Nomenclatura e pela reserva de privilegiados. Os políticos olham para os povos como se estes fossem incómodos para as suas encenações. Mas os povos olham cada vez mais para os políticos como usurpadores e parasitas.
Em Portugal, os próximos dias, semanas e meses, vão ser de imensa propaganda. As glórias do Governo e de Sócrates serão equiparadas aos mais altos feitos da história. Tudo para o bem e a grandeza do país. A impecável organização dos festejos será elogiada por toda a gente. O discurso do primeiro-ministro será mostrado como jóia rara e dele se dirá que ascendeu ao estatuto de líder mundial. Repetir-nos-ão, centenas de vezes, que Portugal está na linha da frente. Da paz, do diálogo, da cooperação, dos direitos humanos, da democracia, da ajuda ao desenvolvimento e da humanidade em geral. Pobre país que jubila com os cenários de pechisbeque, mas persiste na linha de trás da justiça, da produtividade, da educação e da desigualdade social.
Dizem que os conflitos, quando atingem níveis insuportáveis trazem a paz. Mas também dizem que as grandes festas de concórdia e espalhafato anunciam o conflito, a violência e a miséria. São coisas que se dizem...Sociológo (Público)
-
Nota do Papa Açordas: Mais um excelente artigo de opinião de António Barreto, coincidente com o que pensa grande parte dos portugueses, em especial aqueles que tiveram que mudar as suas rotinas. Já alguém fez as contas às vitímas que pesam no currículo destes sobas africanos?
Serão milhares ou milhões?
2 comentários:
Como sempre resultados foram zero, sorrisos muitos, fotografias muitas, hipocrisia rebentou a escala, conta 10 milhões de euros.
Curioso, lendo o jornal ontem deu-me vontade de respigar o António Barreto lá no meu sítio. O amigo aqui fez melhor, deu-lhe ainda mais destaque.
Enviar um comentário