Não sei se ainda é assim, mas há uns anos os fiscais de malas nos voos da companhia aérea israelita El Al não só vasculhavam tudo como no fim eram obrigados a embarcar com os restantes passageiros. Uma situação extrema, o terrorismo, recebia assim uma resposta extrema: os funcionários punham a própria pele em jogo quando abriam uma mala, quando estavam ensonados, quando se deixavam vencer pela complacência.
Não tenho bem a certeza se é possível compreender a enormidade do que aconteceu nas últimas 48 horas. Os nossos bagageiros não só deixaram passar tudo até aqui, tudo o que a troika quis e Passos Coelho um dia sonhou, como se encarregaram eles próprios de dinamitar todo o processo político e a estabilidade mínima do país. O primeiro custo fez-se sentir na Bolsa de Valores, que perdeu ontem 2,2 mil milhões de euros - a banca nacional, já em adiantada fase de raquitismo, liderou as perdas -, mas fez pior. Os juros da dívida pública subiram para lá do suportável.
A aritmética é simples: estamos a falar de uma perda potencial superior a 3% do PIB. Este dinheiro pode até nem ser pago imediatamente, a fatura será diluída no tempo, mas é uma fatura que já vem a caminho e que será repartida pelos contribuintes, em forma de impostos, e pelas empresas, em forma de lucros e negócios que não se farão agora ou talvez deixem mesmo de se fazer. Pense lá: emprestava dinheiro a uns tipos assim? Emprestava dinheiro a um primeiro-ministro incapaz de garantir a estabilidade mínima da coligação que sustenta o Governo? Tinha confiança num Presidente da República que só usa a Constituição para se desresponsabilizar? Nos negócios chama-se prémio ao preço que se atribui ao contexto. Portugal tem literalmente a cabeça a prémio e tudo o que possa ser feito daqui para a frente - privatizações, negociações do memorando, alongamento dos pagamentos da dívida - irá contabilizar este dano irreversível.
Na rua, o Governo está perdido. Não tem salvação possível. Só lhe falta uma sequência de banhos de multidão e protestos para ir definitivamente ao tapete sem qualquer réstia de decoro. Os investidores privados de dívida pública (os poucos que ainda sobravam) venderam ontem baldes de obrigações portuguesas ao preço do tremoço e vão demorar muito tempo a refazer-se do trauma: perderam milhões e não vão esquecer-se disso. Se o País estabilizasse, talvez pudessem começar a comprar títulos a dois anos (com o tal prémio - juro - incorporado), mas esse caminho está longe de recomeçar. Para já, tremoços.
Sobra a troika, este triunvirato delirante, corresponsável pela falência acelerada do País. Há pelo menos duas partes dela que ainda estão dispostas a fazer de conta de que isto ainda vai lá. Comissão e BCE são os únicos que seguram o País e que até ver lhe emprestam dinheiro. Estamos literalmente nas mãos de terceiros como nunca estivemos. Daqui para a frente, a soberania é só um faz-de-conta, com este ou outro Governo. Isso devemos a Passos e a Portas.(André Macedo - Diário de Notícias)
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