-
"Depois de muitos impasses, está a ser construído um centro de congressos em Kingali, no Ruanda. Este desgraçado país, a recuperar do genocídio de 1994, conseguiu colocar 3,5 mil milhões de dólares de dívida a dez anos a um juro de amigo - e a procura ultrapassou oito vezes a oferta. Não vou aqui especular sobre a oportunidade da obra, interessa-me apenas sublinhar que a colocação de dívida ruandesa foi conseguida com um juro igual ao que Portugal teria pago ontem se Gaspar tivesse carregado no botão verde. No dia 3 de maio o Ruanda foi aos mercados e pagou 6,875%; ontem Portugal tocou nos 6,779%.
Não estou a dizer que somos ruandeses. Chamo apenas a atenção para um detalhe: até há bem pouco tempo, apesar de o BCE insistir em comportar-se como o Tio Patinhas - Onkel Dagober, em alemão - a Reserva Federal americana fez o contrário: nunca parou de comprar todo o tipo de dívida no mercado secundário, o que teve efeitos positivos na economia. O desemprego baixou para os 7,6%, a venda de casas normalizou-se, o investimento regressou e o PIB reagiu.
Na verdade, a Reserva Federal anda há três anos a imprimir dólares. Essa liquidez não só ajudou os EUA a sair na frente da Grande Recessão, mas beneficiou (em regra) os países emergentes, os em vias de desenvolvimento e pelo caminho os hesitantes europeus. Com os dólares injetados pela Reserva Federal (compra 85 mil milhões de dólares todos os meses em obrigações), os investidores - fundos de investimento e fundos soberanos - procuraram os negócios com maiores rendibilidades. As dívidas do Ruanda, Portugal, Espanha e outros países passaram assim de investimentos arriscados a boas oportunidades. A procura fez naturalmente cair os juros.
Não foi só, portanto, a obediência pavloviana de Gaspar às ordens da troika (ultrapassando-as perigosamente) que agradou aos mercados, embora o nosso sofrimento coletivo também tenha credibilizado (!) o processo. O incentivo dos compradores era bem mais evidente - ganhar dinheiro -, e havia liquidez (dólares) para aplicar, foi isso que aconteceu. A promessa do BCE de salvar o euro também deu uma mão, mas agora que a política monetária expansionista americana tem os dias contados (o fim abrupto seria fatal...), o castelo de cartas europeu começa a deslaçar-se. Afinal era a América que bancava o jogo, não o BCE.
A fragmentação financeira no euro está, por isso, a aumentar e as consequências já são visíveis: os juros portugueses a dez anos voltaram à zona de morte (7%) - como diz Warren Buffet, só descobrimos quem está a nadar nu quando a maré baixa, e nós, como é notório, estamos a afogar-nos em pelota. Entretanto, a Alemanha continua a lucrar, adia tudo o que pode, até a união bancária. A greve geral de hoje deveria ser por isto. Só por isto. Protestar contra Passos Coelho é protestar contra o vazio." (André Macedo - Diário de Notícias)
Sem comentários:
Enviar um comentário