domingo, 11 de maio de 2014

O irregular funcionamento da Presidência

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O que mais me vem à memória, no dia de hoje, são as afirmações peremptórias de agentes políticos, comentadores e analistas, nacionais e estrangeiros, ainda há menos de seis meses, de que Portugal não conseguiria evitar um segundo resgate. O que dizem agora?"
Não, quem escreveu isto não foi um militante mais excitado de uma juventude partidária. Talvez a um jotinha qualquer a reflexão sobre o significado da chamada "saída limpa" e os riscos a que Portugal está sujeito seja algo desprezível. Talvez, para essa rapaziada, seja mais importante celebrar uma pirrónica vitória sobre os adversários políticos, reais e imaginários, do que refletir sobre uma Europa que deixou de olhar para si mesma como uma comunidade, e deixa um dos seus mais frágeis parceiros à mercê de uma qualquer crise política interna ou internacional ou de um especulador de ocasião (nem o mais crédulo dos apoiantes do Governo acredita que a "saída limpa" foi uma opção governamental). Talvez, para essa gente, perdida na intriga partidária, seja mais apropriado esfregar na cara de alguém uma patranha qualquer do que constatar que nada no nosso sistema produtivo mudou ou que a crucial reforma de Estado continua por fazer.
É uma afirmação que também parece extraída de um qualquer discurso em que o Governo celebrou a despedida de uns senhores que o primeiro-ministro declarou serem os guardiões da verdade; uns que tinham uma política tão boa, tão boa, que era preciso ir além dela. Mas não, não foi nenhum membro do Executivo a proferi-la. Nem esta inacreditável - apesar de eleitoralmente compreensível - euforia governamental, que comemora o não se ter atingido um único objetivo do memorando, que levou a uma emigração sem memória desde os anos 1960, a um desemprego estrutural e jovem destruidor da comunidade, a um crescimento de impostos imoral, a um patamar de investimento que bloqueará o nosso desenvolvimento por décadas, a cortes em salários e pensões, conseguiu atingir o alheamento do cavalheiro que abriu o Facebook para desabafar.
Pode ser que a um indivíduo que não consegue ver a política para além de uma guerra de trincheiras, lhe venha mais depressa à memória afirmações peremptórias e comentários de agentes políticos do que soluções para sairmos da espiral de empobrecimento em que nos encontramos. É natural que esteja mais preocupado com analistas do que com a situação real das pessoas. Até pode acontecer que um personagem desse calibre passe mais tempo a atirar umas setas a fotografias de pessoas de que não gosta do que a criar um clima em que os vários atores políticos se possam entender.
Havia uma última hipótese. Seria um cavalheiro tão certo de que se ia chegar a este ponto, ou seja, que não teríamos segundo resgate, nem um plano cautelar, e que repetiu tantas vezes essa sua certeza que, num assomo de raiva impensada, teria tido um desabafo celebratório da sua infalibilidade. Não é, outra vez, o caso. É alguém que defendeu com unhas e dentes outro tipo de saída, que pôs variadíssimas vezes em questão as políticas suicidas prosseguidas, que chegou mesmo a afirmar que estávamos numa espiral recessiva ou num círculo vicioso que se tinha de interromper. Apetecia-me muito, por ser essa a minha opinião, dizer que o cavalheiro tinha toda a razão na questão do círculo vicioso, mas não se pode dar razão a quem diz tudo e o seu contrário, que tem mesmo o descaramento de mandar as pessoas lerem o que escreve como se lá estivesse outra coisa qualquer.
Aquele comentário revanchista, ressabiado, digno de um jotinha, normal em alguém que olhe para a política como um campo de vitórias e derrotas pessoais, foi feito, como é do conhecimento geral, por Cavaco Silva na sua página de Facebook. Afirmações ao nível do discurso de vitória na noite da sua reeleição, e que fez, logo ali, ferver de arrependimento tantos que votaram nele.
São, mais uma vez, declarações indignas de um Presidente da República. Declarações que servem para ajudar a cavar fossos entre os portugueses numa altura em que os entendimentos são tão importantes. Frases que bloqueiam posições, que fazem que o Presidente deixe de ser um mediador, um balanceador, uma válvula de escape do sistema, para ser um representante acirrado de uma fação, um dos que não hesitam em apoucar os adversários. Como é possível o Presidente da República achar que o podemos levar a sério, quando terça-feira comporta-se como um agente da dissensão, da crispação, da revanche, do ressabiamento, e sexta-feira apregoa a "cultura de compromisso"?
Mal estamos quando até a instituição que deve zelar pelo regular funcionamento das instituições democráticas teima em não funcionar regularmente. Mas a que deuses fizemos tão mal?
(Pedro Marques Lopes - Diário de Notícias)

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