domingo, 8 de março de 2015

Pedro piegas

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"1. Todos conhecemos pessoas com várias personalidades. Muitas da nossa vida de todos os dias, das nossas amizades, das nossas famílias. Outras que não fazem propriamente parte do nosso círculo mais íntimo mas que vemos ou ouvimos nos media. Políticos, por exemplo. São estes que mais vezes exibem uma espécie de desdobramento público de personalidade. Não poucas vezes, dão a sua opinião sobre um qualquer tema e dizem-nos: "É a minha opinião pessoal." Ficamos assim a saber que há a forte possibilidade de ter outra: uma que não é a sua mas que esse mesmo cidadão pode defender ao mesmo tempo que a outra ou, pura e simplesmente, estarmos perante alguém que tem duas personalidades distintas.
Talvez seja este o estranho caso do primeiro-ministro Passos Coelho e do cidadão Passos Coelho.
Antes de mais, e para que não reste qualquer dúvida, cumpre dizer que estou convencido da absoluta honestidade e da preocupação com o bem-estar da comunidade de ambos. Temo, no entanto, que o Passos Coelho primeiro-ministro esteja menos preocupado que o Passos cidadão com princípios fundamentais da democracia liberal. Pelo menos foi o que exibiu com o tristíssimo comentário sobre o seu antecessor no cargo, como também não estou a ver o Passos Coelho cidadão invocar a sua família para sua própria defesa. O que se afigura claro é que os dois Passos Coelho não se dariam bem, nada bem mesmo. Era até capaz de dizer que o primeiro-ministro Passos Coelho pensaria no Passos Coelho cidadão como um daqueles elementos que deviam sair da sua zona de conforto e emigrar.
Não me parece que o Passos primeiro-ministro entendesse a possível ignorância do cidadão Passos sobre a obrigatoriedade de pagar à Segurança Social ou que tivesse contemplações com possíveis esquecimentos. Posso imaginar o que diria o Passos primeiro-ministro sobre alguém que, sabendo que tinha uma dívida, levou três anos para pagar. Talvez que o Passos cidadão era alguém de uma outra raça e não "de uma raça de homens que paga o que deve". E que diria o primeiro-ministro, que acha que tem de haver tanta transparência, tanta transparência, que até acha que deve ser o cidadão a provar de onde vem o dinheiro que tem (vide o seu apoio à iníqua lei do chamado enriquecimento ilícito), de um outro que recusasse dizer em que empresas trabalhou? Assim como o Passos Coelho cidadão. Não ficaria pedra sobre pedra de certeza absoluta.
Também não julgo possível que o Passos primeiro-ministro tivesse contemplações com o Passos cidadão se este entregasse fora de tempo uma declaração ou fosse multado por uma qualquer irregularidade fiscal menor. Não, o primeiro-ministro não toleraria aquele cidadão comum de classe média, residente num subúrbio e que passa férias no meio do povo e não numa qualquer luxuosa estância. Esse, como todos nós, já teve falhas na sua relação com o fisco, esse compreende que às vezes temos de gastar mais dinheiro do que era suposto. Ao Passos Coelho cidadão, o Passos Coelho primeiro-ministro diria que quem não tem dinheiro para pagar o IRS é porque viveu acima das suas possibilidades.
Ao Passos cidadão, homem consciente das suas imperfeições, humilde, avesso ao puritanismo, com noção de que a importância dos pecados muda com o tempo, não perdoaria o Passos Coelho primeiro-ministro. Estou aliás convencido de que ultimamente quando olha para o espelho e vê o cidadão Pedro Passos Coelho lhe diz: "És um piegas, pá."
2. O ministro da Segurança Social tem azar: sempre que é mais papista do que o papa é certo e sabido que acaba a falar sozinho. No episódio da TSU, foi Mota Soares o primeiro a apregoar a genialidade do plano para depois ser, digamos assim, corrigido pelo líder do seu próprio partido e pelo primeiro-ministro - este esmagado pela realidade.
Também agora, mal se soube do não pagamento atempado à Segurança Social por parte do primeiro-ministro, lá quis o Sr. ministro ser o primeiro a jurar pela probidade de Passos Coelho. E a vontade de agradar foi tanta, que não hesitou em acusar os próprios serviços do ministério que dirige da prática de erros. Coitado do primeiro-ministro, ele não tinha nada que saber se devia pagar, a culpa era dos malandros dos funcionários. E, pronto, lá teve o ministro azar outra vez. O próprio primeiro-ministro veio dizer que não era perfeito e que era ele quem teria falhado.
Entretanto, o ministro calou-se. Talvez seja mesmo a atitude mais acertada. Para ele e para nós. Assim não teremos de assistir a espetáculos constrangedores.
3. Cavaco Silva acha que os problemas de Passos Coelho com a Segurança Social são fruto de "controvérsias político-partidárias que já cheiram a campanha eleitoral".
Ficamos assim a saber que o Presidente da República acha que nada no comportamento de Passos Coelho é reprovável e, portanto, tudo isto não passa de uma "jogada" da oposição. Como foram órgãos de comunicação social que divulgaram os lapsos do primeiro-ministro, devemos, assim, concluir que os que o fizeram estão ao serviço de interesses político-partidários. Ao que Cavaco Silva chegou."
(Pedro Marques Lopes - Diário de Notícias)

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