domingo, 29 de março de 2015

Elites e vergonha

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"1. É bem verdade que a qualidade da classe política se tem deteriorado. Muita gente sem outra vida que não tenha sido a luta de poder nas jotas e depois nos aparelhos partidários, que confunde política com claques de futebol, que vê o partido como uma agência de emprego, que olha para o poder como um fim em si próprio e não como um instrumento para o benefício da comunidade, encheu os partidos de poder com os resultados conhecidos.
A normal maior exposição pública da atuação política faz que estejamos muito mais próximos, e atentos, a este tipo de fenómenos. Talvez seja por isso que durante muito tempo se tenha pensado que a política seria um, digamos, local especialmente ocupado por incompetentes, impreparados ou coisas ainda piores. Não fossem estes políticos e tudo se resolveria, seriam eles os culpados de todos os males.
Bastou, por exemplo, que tivessem chegado ao conhecimento público várias questões ligadas à Justiça para que percebêssemos que a classe política estava longe de ser a única com problemas sérios, com a questão suplementar de que podemos substituir, pelo menos em parte, os políticos. Já juízes e procuradores é outra história.
Tal como várias entidades ligadas à Justiça - basta consultar documentos das respetivas associações sindicais e até muitas sentenças -, sempre muito críticas do poder político, não faltam declarações de empresários e gestores a "denunciar" o grande mal português: o político.
E chegamos à comissão de inquérito sobre o BES.
O lamentável espetáculo que deram alguns dos nossos principais gestores e empresários falou por si, mas houve alturas em que pareciam estar todos ao serviço de uma qualquer conspiração anticapitalista. Ninguém sabia nada do que se passava nas empresas que geriam, todos sofriam de problemas de memória com necessidade urgente de acompanhamento médico e a culpa era sempre do outro. E não estivemos perante gente qualquer, não eram propriamente empresários de vão de escada ou gestores de PME: líderes de grandes grupos, gestores premiados nacional e internacionalmente, administradores de bancos. De alguns deles recordo antigas frases eloquentes sobre o nosso destino coletivo e lamentos sobre a qualidade dos políticos. Pois nesta comissão há que elogiar os deputados que mostraram uma capacidade de trabalho, conhecimentos e uma dignidade que deveria fazer corar de vergonha a esmagadora maioria dos "grandes" gestores e empresários que lá estiveram.
Para alguém, como eu, que acredita na iniciativa privada como principal fonte de construção de riqueza, que o Estado deve estar concentrado sobretudo em funções de soberania e que se deve comportar essencialmente como árbitro e regulador, estas audiências podiam abanar essas convicções. Não abanaram, porém. Como também não abala a minha fé na democracia a existência de maus políticos.
O que parece evidente é que temos um sério problema entre aqueles que deviam ser referências, entre aqueles que deviam por tradição, por melhor educação, por ocuparem lugares de destaque na sociedade ou por outra razão qualquer, ser verdadeiros exemplos. Entre aqueles que se convencionou, mal ou bem, apelidar de elites. E isto, infelizmente, é válido, entre outras, para as classes políticas, judiciais ou empresariais. Para piorar, a pobre e triste imagem que passam afeta os bons empresários, políticos, juízes e procuradores que ainda temos.
No fundo, serve tudo isto para dar razão àquilo que já tanta gente repetiu: o melhor que esta terra tem é o seu povo, já as elites...
2. Os deputados da maioria preparam-se para aprovar uma iniquidade na forma de uma lei que permite a outras pessoas, que não alguns agentes de autoridade, o acesso a uma lista de pessoas que foram condenadas e que cumpriram pena pelo crime de abuso sexual de menores. Uma norma que, aproveitando o justo sentimento de repulsa contra o, provavelmente, mais vil crime, o abuso sexual de menores, é usada para promover o mais desbragado populismo. Uma lei que institui uma pena perpétua, que promove os julgamentos populares e que não é digna - exista onde existir - de uma democracia liberal.
Uma lei destas nunca seria admissível, mas num afã, que só alguém que despreza os mais básicos valores democráticos e a mais comum decência poderia ter, chega-se ao ponto de mentir sobre estudos de reincidência neste tipo de crimes. Dizia a ministra da Justiça que a reincidência era "louca", "80% a 90%", e para o provar citava um estudo do psicólogo clínico Mauro Paulino. Ora, o investigador nega esses números e chega até à conclusão de que ninguém no gabinete da ministra deve ter lido o livro, como se referiu numa peça deste jornal elaborada pela jornalista Fernanda Câncio.
Se este tipo de comportamento por parte de Paula Teixeira da Cruz não surpreende, muito me espantaria se os deputados de partidos que construíram o Estado de direito em Portugal, os do PSD e os do CDS, alinhassem em semelhante vergonha."
(Pedro Marques Lopes -  Diário de Notícias)


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