A decisão de ontem do Tribunal Constitucional, chumbando, pela violação do direito à privacidade, o acesso direto das secretas aos dados de tráfego telefónico (assim como fiscais e bancários) é boa e justa e aplaude-se. Mas é o que se chama em inglês feel good: algo que faz sentir bem mas pouco mais, ou mais nada. Não só por se suspeitar de que o ora inviabilizado já será (ilegalmente) feito e continuará a sê-lo, mas também porque o decidido evidencia várias ironias.
Uma delas foi vincada pelo juiz presidente, Sousa Ribeiro: o próprio armazenamento dos dados telefónicos a que as secretas acederiam a seu bel-prazer (sem o crivo de três juízes que a lei em vigor determina) está provavelmente ferido de inconstitucionalidade. É o que indicia a decisão de abril de 2014 do Tribunal Europeu de Justiça, a qual anulou, por "grave ingerência na vida privada", a diretiva de 2008 que estabelecia a obrigação de as operadoras guardarem os dados de tráfego (de toda a gente, sublinhe-se) até dois anos. Ora a lei portuguesa que obriga à preservação de dados durante um ano, para acesso eventual das autoridades, resulta dessa diretiva.
Infelizmente nenhum dos jornalistas presentes no TC perguntou a Sousa Ribeiro porque é que tal decisão do TEJ, que na Alemanha e Áustria fez "cair" as leis que decorriam da diretiva, não teve consequências cá. O juiz poderia então responder que o TC português está de mãos atadas até que um caso concreto, resultante de processo nos tribunais, lhe seja submetido ou as instituições que lhe podem solicitar a fiscalização sucessiva de uma lei o façam. A saber, a Procuradoria-Geral da República, a Provedoria de Justiça e o Parlamento, via um grupo de deputados.
Quanto ao Parlamento, estamos conversados: dele surgiu, aprovada por mais de dois terços (PSD, PS e CDS), a lei chumbada. Da PGR e da Provedoria, silêncio, inação e, em resposta a pedidos de esclarecimento do DN, rabo a fugir à seringa. É isto grave? Sousa Ribeiro claramente acha que sim, tanto que o denunciou. Mas não é de esperar qualquer reação da sociedade portuguesa a um abuso no acesso a dados de chamadas, habituada que está à devassa do respetivo conteúdo. Sabe-se que as polícias portuguesas escutam por tudo e por nada, com o resultado a ir parar quotidianamente aos media, e isso nunca suscitou escândalo de maior. Fazem-no com autorização de juiz, sim - mas que proteção tal garante, se os tribunais superiores (Relação de Lisboa, em 2007) decretam que não é sequer preciso ser-se suspeito de crime para estar sob escuta, podendo qualquer pessoa com quem o suspeito se relacione ter igual tratamento, desde que possa ser "interlocutora", mesmo não tendo "um papel ativo ou passivo na transmissão da mensagem"? Tudo, claro, desde que haja "fundadas suspeitas" - no caso, de que o suspeito fala com aquela pessoa. Privacidade, direito fundamental? Contem outra piada.
(Fernanda Câncio - Diário de Notícias)
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