sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Do outro mundo...

Do outro mundo...
Constança Cunha e Sá

A investigação do Público sobre a actividade profissional do eng. Sócrates, causou uma viva e estridente indignação entre muitas alminhas que pairam por aí, a grande altitude, indiferentes aos "pequenos pecados" que recheiam o curriculum do primeiro-ministro e a milhas dos jogos mesquinhos que animam esta "campanha pessoal e política". Antes de mais, porque qualquer trabalho jornalístico, digno desse nome, deve incidir sobre os inegáveis méritos que nos oferece o presente e não sobre o longínquo e insignificante passado de quem actualmente nos governa. Dá ideia de que tudo o que se escreva sobre os anos 80 é, como disse o engº Sócrates, um esforço desesperado de "arqueologia jornalística" que só os obscuros interesses da Sonae conseguem justificar. Em Portugal, ao contrário de outros países mais picuínhas, o passado prescreve rápidamente: um político surge do nada, dependente das circunstâncias e das necessidades do dia.
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Pouco importa que, na altura, o actual primeiro-ministro já fosse dirigente do PS e deputado na Assembleia da República. E pouco importa também, como é óbvio, que o actual primeiro-ministro possa estar a mentir sobre a autoria dos projectos que assinou ou que aqueles "caixotes" irrepreensíveis tenham sido concebidos por si. O que importa, sim, é assinalar a "campanha" de um jornal que tem o atrevimento de tornar públicas as actividades públicas de uma figura pública. Como é que, depois da "novela do canudo", António Cerejo tem o descaramento de aparecer, agora, com esta "soap opera dos projectos"? Esta sim, é a pergunta que se impõe. O facto de o Ministério Público ter arquivado o processo da licenciatura do eng. Sócrates sem se dar ao trabalho de explicar como é que apareceu um certificado falso, na Câmara da Covilhã, ou um documento rasurado na Assembleia da República é, para estas impolutas alminhas, um pormenor insignificante em que não vale a pena pensar, É assim que florescem as mais subtis manobras de intimidação.
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Com um sentido de oportunidade único, o dr. Telmo Correia aproveitou a madrugada do dia em que o Governo do eng. Sócrates tomou posse, para aumentar significativamente a produtividade nacional. Numa maratona legislativa digna de um atleta de alta competição, o antigo ministro do CDS assinou 300 diplomas que esperavam pacientemente que ele pusesse os pés no seu gabinete. Como é natural, no meio de toda esta azáfama, o dr. Telmo não teve tempo para perceber bem o que estava a despachar: mesmo sem existir um registo exacto do tempo que demorou, calcula-se que o antigo ministro tenha actuado a uma velocidade vertiginosa, conseguindo estabelecer um recorde único de assinaturas, por minuto, que devia, desde já, merecer as honras do Guiness Book e garantir a admiração de todos os seus compatriotas. Não se lhe pode, pois, exigir grandes explicações sobre alguns diplomas mais complexos - como ele, aliás, já demonstrou. Compreensívelmente, o dr. Telmo Correia despachou a segunda versão do parecer da Inspecção-Geral de Jogos, que impedia a devolução ao Estado do edifício do Casino de Lisboa, sem medir bem as consequências do seu irreflectido acto. As toscas explicações que deu sobre este delicado despacho mostram bem a inconsciência que presidiu a essa gloriosa madrugada.
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Mas, independentemente da importância do Guiness e do aumento da produtividade, não deixa de ser estranho que um ministro decida assinar centenas de despachos, depois de a maioria de que faz parte perder as legislativas e umas horas antes do novo Governo entrar em funções. Por muito injusto que isso possa parecer ao CDS (e com certeza que deve parecer), a suspeita sobre a assinatura da segunda versão do parecer da Inspecção-Geral de Jogos estende-se à quantidade de despachos assinados, não se percebendo como é que um ministro, nas vésperas de abandonar a sua pasta, chega a estes níveis de actividade. Um excesso de quem tinha o trabalho em atraso? Ou, pior ainda, a velha e conhecida impunidade de quem se serve de um cargo público e acha que pode despachar tudo o que quer? Nenhuma das alternativas favorece a imagem de um partido que não se esquiva a criticar a falta de "credibilidade" do actual primeiro-ministro, apesar da falta de credibilidade que episódios como este suscitam.
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E agora um pequeno apontamento ou uma pequena benção, se quiserem, que pode animar a nossa triste periferia: uma sondagem feita em Inglaterra, revela que 23 por cento dos inquiridos considera que Winston Churchill foi apenas uma personagem de ficção, desconhecendo, em absoluto, as funções que, durante a Segunda Guerra, exerceu essa misteriosa figura. Em contrapartida, 58 por cento dos súbditos de Sua Magestade acha que Sherlock Holmes andou, de facto, pelas ruas de Londres, à cata de assassinos, com uma lupa e o seu conhecido cachimbo. Presume-se que, perante isto, os portugueses se sintam mínimamente satisfeitos. Por cá, ninguém pensa que Carlos da Maia existiu realmente - até porque quase ninguém sabe quem é esse tal Carlos da Maia. Melhor ainda: como se viu por um concurso qualquer apresentado na RTP, toda a gente sabe que Salazar não foi propriamente fruto de uma ficção, havendo mesmo quem chore pela sua morte na certeza de que ele, se pudesse voltar, metia isto tudo na ordem. Analfabetos? Nós?
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Segundo li num jornal, esta semana, o prof. Marcelo Rebelo de Sousa considera que as declarações de Alípio Ribeiro, o actual director da PJ, sobre o "caso Maddie" são "uma coisa do outro mundo". E são. Infelizmente, esse outro mundo parece que é o nosso. (Público)
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Nota do Papa Açordas: Um excelente artigo de opinião de Constança Cunha e Sá, cuja leitura aconselhamos aos nossos leitores.

3 comentários:

SILÊNCIO CULPADO disse...

Compadre Alentejano
Li calmamente tudo o que aqui está. Gosto desta forma clara e frontal de dizer.
José Sócrates sofre da doença crónica de desonestidade intelectual. Isto para não falar doutras características que também não abonam muito em seu favor.
O caso Telmo Correia é uma das muitas vergonhas da política. Pode ser legal mas não é moral.
Porém, uma coisa que dói é o ataque cerrado à comunicação social e à investigação jornalística sempre que surgem notícias que não agradam a certos quadrantes.

Pata Negra disse...

Mais do que os projectos, e nem precisava dos ver para assim pensar, assusta-me sermos governados por uma personagem desta estatura: um menino da JS!
Mais do que um rol de assinaturas a torto e a direito, revolta-me a petulância com que os Telmos continuam se engomam perante as câmaras da TV.
Mais do que a ignorância dos ingleses, comove-me o abstencionismo dos portugueses.
Um abraço de Moura

Nuno Góis disse...

É realmente impressionante como tudo isto passa impune. Não há julgamentos, nem civis nem politicos...e eles lá se continuam passeando e dando-nos constantes lições de moral.
Absolutamente insopurtável