domingo, 22 de fevereiro de 2015

Quer mesmo um Estado de direito

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1- Na semana passada, escrevi neste espaço que se o texto que a advogada Paula Lourenço publicou na Revista da Ordem dos Advogados não levantasse, pelo menos, interrogações sérias sobre o estado da Justiça em Portugal, nomeadamente sobre o processo conhecido como Operação Marquês, algo estava errado.
As denúncias feitas pela advogada de Carlos Santos Silva, preso preventivamente no âmbito da dita operação, são de uma enorme gravidade. Percebo que haja quem pense que Paula Lourenço esteja a tentar defender o seu cliente da melhor forma possível, mas seria preciso estar completamente desprovida do mais elementar bom senso para fazer sem nenhum fundamento as acusações que faz. A advogada fala de interrogatórios ilegais, apreensões de diversos objetos sem mandado, negação de acesso a advogado, tratamentos desumanos; uma série de faltas de respeito pela lei e de abusos de poder que em qualquer país que se orgulhe de viver sob uma democracia liberal levaria, pelo menos, a que pessoas mais ou menos responsáveis pela comunidade viessem a público pedir esclarecimentos, que a opinião pública quisesse saber, ao menos, se havia alguma veracidade nas acusações feitas.
Mais de uma semana volvida e nem um responsável político se pronunciou. Nem o governo, nem o Presidente da República, nenhum deputado, nenhum partido, uma única organização cívica, nada. Um silêncio completo. Nem a ministra da Justiça, sempre disposta a dizer coisas, nem um antigo ministro da Justiça, agora líder de um partido, que podia, para variar, dizer qualquer coisinha de não irrelevante. Rigorosamente nada. Possíveis ataques ao Estado de direito, possíveis ataques a garantias básicas dos cidadãos, possíveis abusos e ilegalidades em investigações não fazem os nossos representantes mexer sequer o sobrolho. Já sabemos que a procuradora-geral da República veio dizer que não há problema, mas é bom que se perceba que o estado da Justiça está longe, muitíssimo longe, de ser um assunto que diga apenas respeito aos seus operadores. E não deixa de ser estranho que uma denúncia da gravidade da que foi feita seja arrumada de uma forma burocrática.
Que fique absolutamente claro, estamos perante uma eventual questão política, uma questão política no mais rigoroso sentido do termo: o de saber se o poder judicial cumpre escrupulosamente a lei, se quem é responsável pela justiça respeita os limites por ela impostos, se há ou não graves falhas na condução do processo penal, se a Justiça não abusa dos seus poderes.
E é esta a parte em que este cidadão dá confiança aos que pensam que qualquer pessoa que ache que há irregularidades neste caso só pode ser alguém que é movido por um qualquer amor irracional ao ex--primeiro-ministro. É nesta altura que se tem de escrever que não está em causa Sócrates ou Santos Silva, mas sim princípios fundamenteis do Estado de direito. Que é muito provável que todas as falhas que Paula Lourenço denuncia não sejam exclusivas deste processo e que sérias irregularidades aconteçam noutros. Que este caso, dada a sua relevância e tumulto, sirva para percebermos que há problemas graves na Justiça.
Mais do que o silêncio dos políticos, que ou não percebem o que está em causa ou pensam apenas que uma tomada de posição poderá ser interpretada como um apoio a quem quer que seja, mais do que o miserável medo de quem percebe que algo está errado mas receia represálias, mais do que o silêncio de muitos agentes de justiça que à boca pequena falam de casos preocupantes mas não os denunciam publicamente, algo é ainda mais preocupante. De longe o que mais preocupa, o que causa um profundo incómodo, é a sensação de que Estado de direito, direitos fundamentais, garantias básicas, princípios que foram construídos para defender os cidadãos do arbítrio face ao Estado, sejam vistos como palavras utilizadas para defender quem quer que seja. Que haja quem pense que esses princípios são desprezíveis se servirem para defender alguém de quem não se gosta ou não seja da mesma cor política. Que os cidadãos tenham esquecido ou desprezem direitos e garantias por que tantos lutaram e constituem valores essenciais da nossa civilização.
Pense lá um bocadinho, caro leitor, quer mesmo um Estado de direito?
2- O acordo a que se chegou na passada sexta-feira diz que se vai continuar a negociar, que acabou o tempo do pensamento único. Vem na sequência da assinatura da certidão de óbito dos criminosos memorandos e das políticas por eles consubstanciadas - e do anúncio subentendido de um novo caminho para a Europa - feito pelo presidente da Comissão Europeia quando afirmou que a troika atingiu a dignidade dos países resgatados.
Tudo isto seria possível sem a vitória do Syriza e sem a sua posição negocial? Claro que não.
Por muito que custe, pode ter sido a vitória de um partido de esquerda radical a salvar a Europa. "Estranhos são os desígnios do Senhor."
(Pedro Lopes Marques - Diário de Notícias)

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