Não podia concordar mais com o primeiro-ministro quando anteontem disse, sobre a morte de uma doente com hepatite C, que ninguém deve "aproveitar o que é trágico" e "alimentar-se da desgraça". Pena ter-lhe tão tarde chegado a iluminação. Em agosto de 2010, no primeiro Pontal à frente do PSD, não teve pejo em aludir à cegueira de que foram vítimas pacientes de uma clínica privada algarvia, acusando as "autoridades públicas" de "incúria" por "se demitirem da sua função de fiscalização", e acrescentando: "É isto culpa do PSD? É este o Estado social que o PS quer oferecer a Portugal?"
Que repulsa deve sentir Passos PM desse outro que, na oposição, aproveitava mortes e cegueiras para combater o governo. Como a que surge ante quem recusa renegociações, perdões e reestruturações da dívida, que ataca os gregos por quererem pagar menos ou mais devagar, que clama "pagaremos custe o que custar" mas se rebela contra a farmacêutica que criou um medicamento com taxa de cura de 90%: "O preço que solicitado não é adequado sob nenhum ponto de vista. Os estados devem fazer tudo o que está ao seu alcance para salvar vidas humanas e assegurar os melhores cuidados de saúde. Masé mentira que custe o que custar no sentido em que tenhamos recursos ilimitados para suportar qualquer preço de mercado".
Evidente: o Estado não tem recursos ilimitados. E, sem dúvida, o preço que a farmacêutica pede é muito elevado. Mas será mesmo "injustificado"? Não há informação oficial sobre qual o valor na mesa ao fim de um ano de negociações, mas o DN noticiou ontem que um ciclo de tratamento - três meses - desceu para 24 mil euros, metade dos 48 mil iniciais. Muitos doentes precisam de seis meses e podem ser necessários outros fármacos; difícil fazer contas. Tendo só 30% dos 13 mil doentes identificados indicação, segundo os especialistas, para tratamento imediato, este, a um preço médio de 30 mil euros, orçaria 117 milhões. Imenso. Porém - por exemplo - em 2013 o SNS gastou 220 milhões com antirretrovirais para 28 mil pessoas com HIV-sida; 7857 euros por paciente. É muito ou razoável? Se não combatido, o HIV causa a morte. Tal como o HVC (vírus da hepatite C). A medicação para o HIV é necessária toda a vida, o que implica multiplicar o valor por todos os anos de toma; o fármaco inovador contra o HVC exige um ciclo ou dois de tratamento e pronto - estamos a falar de cura. Não é difícil concluir qual sai mais caro. Mas, claro, dizer algo deste género é, como ontem gritava a maioria no parlamento, "ficar do lado das farmacêuticas." Porque os mercados só têm razão quando emprestam dinheiro a juros usurários, e Passos e quem o apoia têm horror à demagogia. Ou não fosse ele quem, em abril de 2011, em "mensagem de Páscoa", asseverava: "Nestes momentos conturbados, podemos abdicar de muitas coisas. Mas a garantia sobre os cuidados de saúde é uma segurança que tem de ser dada a todas as pessoas."
(Fernanda Câncio - Diário de Notícias)
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