"Quantos inocentes já sofreram situações que vão até à morte por pessoas que foram condenadas por esse crime e são libertas?" A pergunta é da ministra da Justiça, anteontem, numa entrevista à RTP, e faz todo o sentido: queremos saber quantas crianças foram abusadas por reincidentes. Não necessariamente por ser, como Teixeira da Cruz sustenta, a questão-chave para a defesa da sua versão da Lei de Megan (nome dado às leis que nos EUA, desde 1994, permitem que as comunidades possam saber a identidade e morada dos condenados por abuso sexual que residam na zona), mas porque é fulcral para perceber qual a eficácia do sistema judicial/penal e ajuizar da necessidade de ajustes e alterações.
Durante toda a entrevista, porém, a ministra não respondeu à sua própria pergunta. Aliás, não apresentou um único dado. Nem sobre o número de condenados pelo crime em Portugal, nem sobre o tipo de relação destes com a vítima - limitou-se a dizer que havia duas categorias, a dos familiares e a dos outros, sem especificar qual a sua importância relativa e se quer que todos sejam incluídos no registo para conhecimento público ou não; de resto, nem sobre o tipo de conhecimento que o público pode ter e como foi clara - e muito menos sobre a eficácia das leis Megan. A única coisa que concedeu dizer sobre o fulcro da questão é que "o grau de reincidência é louco."
Será? Num estudo de 1997 efetuado no Reino Unido, a taxa de re-condenação de abusadores de crianças era de 13% em cinco anos, comparando com 50% em dois anos para outros tipos de criminosos; estas conclusões são consistentes com as de estudos canadianos e americanos. Por outro lado, a eficácia das leis Megan está longe de certificada: parecem ter pouco ou nenhum efeito sobre a taxa de reincidência e servir sobretudo para acelerar a resposta em termos de localização e detenção dos criminosos caso reincidam.
A lei levanta, é claro, muitas mais questões que a da sua eficácia. Mas não pode surpreender que Teixeira da Cruz se não dê conta dos problemas éticos e de que é todo o edifício judicial português que põe em causa ao considerar que as penas dos tribunais não chegam como castigo e que a exposição infamante e persecutória deve regressar à lei; afinal, estamos perante uma governante que não se dá sequer ao trabalho, ao pugnar por legislação que será a única do tipo fora dos EUA (existem em vários países registos específicos para condenados por crimes sexuais contra crianças, mas os EUA são o único em que o registo está acessível ao público; nos outros existe apenas para consulta das autoridades), de apresentar qualquer tipo de justificação racional ou sequer de relação com o real. Uma conduta em relação à qual no seu caso, como no do Governo que integra, se pode falar, consubstanciadamente, de reincidência louca."
(Fernanda Câncio - Diário de Notícias)
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