sábado, 5 de julho de 2014

Presidente grande não é sinónimo de grande Presidente

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"Foi há pouco mais de uma semana. Sem registo de achaques, fanicos ou camoecas, o Presidente da República, qual peregrino de Nossa Senhora de Fátima - a tal que, em maio de 2013, "inspirou" o fecho da sétima avaliação da troika -, "ajoelhou-se" perante o seu homólogo alemão para acatar a lógica punitiva que encima a liderança merkeliana da Europa.
"Aprendemos a lição dos últimos anos", afirmou o professor Cavaco diante do senhor Gauck. Isto é, na narrativa enunciada agora pelo Chefe de Estado, os portugueses todos, de quem, insiste em afirmar, é o Presidente, foram, durante anos a fio, mandriões, viveram acima das suas possibilidades e às custas dos virtuosos e generosos alemães. E, portanto, os mil e tal dias de expiação violenta dos pecados a que já fomos sujeitos - e que hão de continuar - são justos e merecidos, até porque quem não tem dinheiro não tem vícios, que é como quem diz, casa própria, carro, televisão para ver a bola e as novelas, sofás da Moviflor (roubado ao Pacheco Pereira), os putos na escola e outros luxos, como funcionários públicos bem pagos ou reformados com pensões acima de 700 euros. Tudo conseguido, está bom de ver, à custa do crédito, ou seja, do endividamento.
Definitivamente, Cavaco não tem emenda. Bem sei que talvez fosse pedir demais ao inquilino de Belém que, como Matteo Renzi no Parlamento Europeu, recordasse ao senhor Gauck que a Alemanha só é hoje uma economia pujante e que cresce porque, em 2003, quando foi pioneira na violação do défice inscrito no Pacto de Estabilidade e Crescimento, a União Europeia condescendeu na flexibilização das regras. Isto para já não falar da solidariedade europeia, traduzida em perdões, na era da reconstrução do após-guerra ou no tempo da reunificação alemã. Já que não lhe passou sequer pela cabeça citar os seus próprios roteiros no que à incapacidade de pagar a nossa dívida diz respeito, de acordo, naturalmente, com as regras estabelecidas no Tratado Orçamental, e que por isso têm fatalmente de ser revistas, bastava apenas que tivesse ficado em silêncio, em vez de nos ter sujeitado a nova humilhação.
Cavaco Silva é homem de metro e oitenta. Mas isso faz dele, apenas, um Presidente grande. Não um grande Presidente. E esse pormenor da perspetiva com que se olha para a estatura faz toda a diferença. Nos últimos dias, aliás, a dimensão cavaquista ficou evidente, mais uma vez, em dois momentos distintos.
Primeiro, ao ignorar o prémio internacional com que Carlos do Carmo foi distinguido. É certo que não é um Óscar ou sequer um Nobel da Literatura. É só um Grammy Latino, coisa sem importância, pela excelência da carreira de mais de 50 anos. Cavaco é assim, politicamente pequenino, politicamente rancoroso, politicamente mesquinho. Tal como já acontecera, por exemplo, na morte de Saramago, o Presidente da República foi incapaz de mostrar nobreza e afirmar-se orgulhoso por mais este feito de um embaixador da cultura portuguesa. E tudo porque Carlos do Carmo não faz parte da corte cavaquista, e não hesita em criticar frontalmente e em público os defeitos políticos de Cavaco. Ser Presidente de todos os portugueses é saber conviver com as diferenças e com a crítica, felicitando todos os que se destacam e não apenas aqueles que o bajulam.
E depois houve o Conselho de Estado. Mais uma vez, Cavaco Silva está preocupado, sobretudo, com o seu lugar na história. Apelar a "consensos", "compromissos", "pontes de diálogo construtivo" entre partidos, a um ano de eleições legislativas, ainda para mais com o Partido Socialista feito em frangalhos é, obviamente, politicamente desleal e irrealista. Serve, tão-só, o propósito para que o Presidente possa prosseguir a construção da sua narrativa favorita. Ou seja, que avisou, que tudo fez para que as forças políticas do chamado "arco da governação" se comprometessem num pacto, e que não foi por falta de ter tentado ou por sua responsabilidade que isto, eventualmente, não acontecerá.
Como escreveu nesta semana o embaixador Seixas da Costa, "com o devido respeito, o espaço nos livros de História não se ganha desta forma"."
(Nuno Saraiva - Diário de Notícias)

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