sexta-feira, 26 de junho de 2015

Mintos nada urbanos

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"Não, não vou falar de Passos e do Governo. É preciso, bem sei. Mas cansa, anotar mentiras, números martelados, inanidades e desaforos todos todos os dias, e perceber que têm disso fábrica em laboração contínua e são mesmo bons no mister, bem melhores e bem mais incansáveis que quem os desmente. A dada altura, a pessoa já nem quer tomar conhecimento. Como em relação ao tema no qual estupidez, crueldade e falseamento vão ao esplendor e que, morto-vivo, inapelavelmente regressa -- o aborto.
Lá o temos a 3 de julho de novo no parlamento, pela iniciativa legislativa "direito a nascer", subscrita por 38 mil cidadãos, com a inevitável Isilda Pegado à cabeça. Querem que "a mulher seja obrigada a ver a ecografia do feto e a assiná-la", a pagar taxa moderadora caso não apresente atestado de insuficiência, e não tenha direito a "licença paga". E que os médicos objetores de consciência, ou seja, que se opõem ao aborto, participem nas consultas do dito, que "o outro progenitor seja ouvido" e que menores de 16 possam decidir levar gravidez a termo.
Irrita, sim. Mas é poucochinho. Quê, não exigem esfregar-se a ecografia na cara de quem quer abortar? Não determinam que lave escadas para pagar o desmancho, preferencialmente desmanchando-se em sangue? E não estatuem que só clínicos anti-aborto podem dar consultas a quem quer abortar e decisão, seja da mulher, da miúda ou do "outro progenitor", só se admite contra? É que, caros, ou é ou não é. Ao limitarem-se a tentar dificultar o ato e humilhar quem o pratica, admitem o direito ao aborto, logo, a inexistência do "direito a nascer", reduzindo-se à guerra da propaganda e às más fés do costume: disfarçar o facto de o número de abortos "por vontade da mulher", que em 2007 clamavam dever alcançar os 30 a 40 mil anuais por "a oferta estimular a procura" (sim, disseram isto e nunca se retractaram), nunca ter chegado sequer aos 20 mil e estar até a diminuir - menos 20% de 2012 para 2014; insistir na ideia da "leviana" que repete abortos quando a maioria - 59% -- é mãe (30% de mais de um filho), a taxa de repetição portuguesa é das menores do mundo e pós-aborto 95,4% das mulheres escolheram um método contracetivo, com 38,2% a optar por dispositivo, implante ou laqueação; insinuar que quem aborta tem direito a licença paga quando o número de licenças por aborto, na casa das 4 mil, se manteve inalterado antes e pós legalização de 2007; martelar na taxa moderadora quando tal só iria prejudicar as mulheres de fracos recursos, aliás a maioria (59%) das que abortam -- 21,57% são desempregadas, 18,07% trabalhadoras não qualificadas e 17,06% estudantes -, as quais arrostariam para fazer prova de carência, como Isabel Moreira bem sublinhou já, perigos para o sigilo e portanto, potencialmente, para a sua segurança.
Não ia falar de Passos, dizia. Mas dá-se o caso de os Isildos comungarem com ele do diagnóstico e do método: sabem que só podem ganhar mentindo."
(Fernanda Câncio - Diário de Notícias)

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