sexta-feira, 17 de abril de 2015

Ódio de perdição

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"Marta Nogueira, 21 anos, Joana Nogueira, 23. Primas. Anteontem de manhã, na pastelaria onde trabalhavam, no Pinhão, Trás--os-Montes, um homem entrou e apontou a arma para matar, para apagar, para desfigurar: cara, pescoço, cabeça. Joana morreu, Marta está em coma. Os jornais - este jornal - titulam: "Ciúme levou Manuel a disparar." Manuel, parece, tivera namoro com Marta. O crime passa logo, então, à categoria "passional". Como quem diz de amor, de sentimento, "que levam a".
É sempre assim: homem mata mulher? Coitado, gostava demasiado dela, e ela ou o "deixou", ou ele tinha medo que ela o "deixasse", ou ela "portava-se mal", ou ele tinha medo que ela se "portasse mal". Mesmo, note-se, quando uma das mortas é prima do alegado objeto de amor; estamos perante o crime passional por afinidade. Porque será, então, que o homicídio do bebé de 5 meses que o pai esfaqueou há uma semana depois, diz-se, de ligar à mãe da criança a ameaçá-la, não é "de paixão"? Será porque a desculpabilização implícita, a "naturalização" e "contextualização" que induz, não é aceitável na morte de crianças? Porque nada pode justificar que se mate uma criança enquanto uma mulher, tantas mulheres, é outra coisa?
É para contextualizar? Contextualizemos. Até 1975, o Código Penal português incluía aquilo que nos países muçulmanos o Ocidente reputa de bárbaro: crimes de honra. Permitia-se ao marido enganado matar a mulher e o respetivo amante sem mais castigo que uns meses fora da comarca; o mesmo para o pai que matasse as filhas "desonradas" se menores de 21 e a viver "sob o pátrio poder". O Código Civil autorizava repudiar a mulher que fosse não virgem para o casamento, no qual estava submetida ao "chefe de família", que podia abrir-lhe a correspondência, dar--lhe ou não autorização para ter emprego e decidia tudo sobre os filhos (a mãe tinha "o direito de ser ouvida"). A mulher era ainda obrigada a viver com o marido, que podia exigir à polícia a sua devolução caso fugisse. Isto tudo era lei, há 40 anos. Era lei a submissão da mulher, era legal este desprezo que a tratava como menos que pessoa inteira, a nomeava e manietava como propriedade masculina.
A lei mudou mas o sentimento que esta consagrava e propagava não se vai tão rápido. A desculpabilização "passional" substituiu a da "honra"; subsiste a ideia de que "elas dão motivos" - como diziam os que à porta do tribunal aplaudiam Palito, o homem que há exatamente um ano, a 17 de abril de 2014, matou a ex-sogra e a irmã desta e feriu a ex-mulher e a própria filha: "Lá teve as suas razões." A própria justiça o admite, em acórdãos vergonhosos nos quais nunca se invoca isso que o Brasil no mês passado tipificou no Código Penal como feminicídio - o ódio às mulheres que mata. Cá não, é por amor. Em 15 semanas de 2015, já foram, de tão amadas, mortas onze. Somos assim românticos."
(Fernanda Câncio - Diário de Notícias)

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