"Qual é o problema de um pedófilo ser denunciado publicamente?" A pergunta, ouvida num debate na TVI24 sobre a intenção governamental de criar um registo de condenados por abuso de crianças a que a população pode aceder, simboliza o que está em causa, a começar pela ideia de que de um lado estão os que defendem as crianças e do outro os solidários com os "pedófilos" e a terminar no apelo ao linchamento.
É bem o resumo do espírito tabloide que anima os cultores da "lista". Que não por acaso teve como principal defensor, no único país europeu em que existe com acesso à população ("a pedido", como na proposta portuguesa), o News of the World, semanário britânico encerrado em 2011 por se ter provado que escutava milhares de "figuras públicas" - e que em 2002 entrara na caixa de mensagens do telefone de Milly Dowler, uma menina de 13 anos desaparecida e que viria a ser encontrada morta. Aliar a alegada defesa das crianças à mais absoluta desconsideração por elas e por qualquer valor civilizacional, a começar pelo da verdade: o News of the World é o justo estandarte das chamadas "leis de Megan".
Porque não pode ser "a defesa das crianças" a fundamentar a criação de uma lista de condenados com acesso público (recorde-se que no Reino Unido as listas, supostamente de acesso condicionado, apareceram nos tabloides). Primeiro, porque a maioria dos abusos sexuais ocorre na família, apesar de o Ministério da Justiça o negar: basta ler o Relatório de Segurança Interna de 2014. Segundo, porque a esmagadora maioria dos abusos são cometidos por pessoas nunca antes condenadas por esse crime - a taxa de reincidência pelo mesmo ato, pós-condenação por abuso, é inferior a 15% em todos os estudos internacionais. Terceiro, porque todos os estudos sobre o efeito destas leis na reincidência demonstram a sua ineficácia. É o caso do trabalho de 2012 do criminologista americano Richard Tewksbury - cuja entrevista o DN publicou no sábado e que aferiu da influência da primeira lei de Megan, em Nova Jérsia, na reincidência dos abusadores sexuais -, o qual resume: "Servem para as pessoas se sentirem bem."
Porquê, então, insistir numa lei com múltiplos efeitos perversos, incluindo o falso sentimento de segurança? Porquê, senão por ignorância ou má-fé (e como distingui-las em quem tem as responsabilidades de governar?), asseverar que a reincidência é de "mais de 80%", explicando o valor, como fez a ministra da Justiça quando a isso instada pelo DN, como constando de um livro do psicólogo criminal Mauro Paulino, o qual nega? Porquê repetir que a Convenção de Lanzarote, assinada pelo país, obriga à criação de um registo deste tipo, quando tal é falso? Porquê dizer que existem muitos países com leis deste tipo, quando na Europa só o Reino Unido, e com acesso universal só os EUA e um dos estados australianos? É triste constatar, mas nem no que devia ser mais sagrado - a defesa das crianças - podemos esperar deste governo senão mentira, desvergonha e impunidade."
(Fernanda Câncio - Diário de Notícias)
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