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"1. Houve quem se surpreendesse com a violência das reações do Governo, e de algumas pessoas que o apoiam, ao manifesto "Preparar a Reestruturação da Dívida para Crescer Sustentadamente", subscrito por 74 cidadãos portugueses.
De facto, um documento moderado que analisa e propõe soluções para o problema da dívida que, pura e simplesmente, bloqueia qualquer tipo de solução para o desenvolvimento do País, condena a comunidade a dezenas de anos de degradação das condições de vida dos cidadãos, de mais e mais desemprego, de mais e mais emigração, dum aprofundar das desigualdades e, inevitavelmente, ao questionamento do próprio regime, deveria, pelo menos, ser recebido como um contributo para a procura de soluções e debatido com normalidade.
Mesmo quem se espantou com a reação do primeiro-ministro não se deve ter surpreendido com a violência da tropa de combate do Governo. Desde que ficou claro o falhanço absoluto da solução por que se bateram tanto, o que sobrou foi o recurso ao insulto, à sugestão de interesses escondidos, à mentira desbragada sobre a própria letra do texto do manifesto. Uma verdadeira indigência argumentativa. Desta vez, só o volume e a intensidade aumentaram. Nem faltou a costumeira acusação de antipatriotismo, de irresponsabilidade e, claro está, quem fala com os malandros de esquerda é um traidor - a óbvia semelhança deste raciocínio com o típico pensamento da extrema-esquerda até diverte.
Confesso que nenhuma das reações me surpreendeu. Sobretudo a intempestiva do primeiro-ministro na inauguração dum edifício público, sem que ninguém lhe tenha perguntado nada sobre o documento, e de que ele apenas conhecia o pouco que tinha saído nos jornais desse dia. Os fundamentalistas são previsíveis, e Passos Coelho faz hoje parte desse grupo.
É evidente que o primeiro-ministro sabe que este é o momento certo para se falar do problema da dívida. Dado que acha que a principal preocupação da comunidade deve ser o pagamento da dívida mesmo que isso a destrua, nenhum momento será o certo. Mas, mesmo assim, não ignora que é esta a altura apropriada para se falar sobre as soluções para o pós-execução do memorando, e é em tempo de eleições europeias que se devem discutir quais devem ser as políticas para a Europa.
Também não ignora que os mercados sabem melhor que ninguém os dados apresentados no manifesto e qual o tipo de constrangimentos que a dívida impõe ao País. Mais, mal estávamos se tivéssemos um primeiro-ministro que convictamente pensasse que a liberdade de expressão devia ser limitada pelos humores dos mercados.
Claro que o documento direta ou indiretamente denuncia o fracasso da política até agora prosseguida e questiona o que tem sido a explicação oficial para a crise que atravessamos. Mas, convenhamos, também isso já foi mil vezes repetido pelas pessoas que subscrevem o manifesto.
O que perturbou Passos Coelho foi a capacidade de gente dos mais diversos quadrantes políticos, das mais diversas origens profissionais, de representantes dos trabalhadores, dos patrões, conseguirem construir pontes para que se possam encontrar soluções fundamentais para o destino da comunidade. E ele prefere barricadas. Não foi sempre o primeiro-ministro a dizer que só aceita dialogar com quem não negue a realidade, a sua realidade?
O que ficou transparente é que Passos Coelho nunca esteve interessado em qualquer tipo de consenso: queria apenas que mais pessoas acreditassem na verdade dele. Foi o cair da máscara.
O que ficou também à vista de todos é que há uma alternativa quando o discurso oficial é que o único pensamento é o do Governo e o da troika. Que depois deste tempo todo à frente do Governo, é claro que nunca foi capaz de juntar pessoas para um propósito comum e cavou, sim, profundas trincheiras. Foi a exibição clara de que é possível construir compromissos na sociedade portuguesa sobre assuntos vitais para o nosso futuro comum, e que ele e o seu governo estão completamente isolados.
Não há nada que amedronte mais um fundamentalista do que o consenso.
Um consenso impõe diálogo, exige tolerância, faz que se tenha de ouvir gente com que não se concorda, pessoas até com que normalmente nunca se imaginaria ter qualquer tipo de relação. Os apelos ao consenso dum fundamentalista são sempre objetivamente falsos. Ele sabe a verdade. Não há nada que mais o perturbe do que alguém a negar.
Foi sobretudo isto que perturbou Passos Coelho, que fez que ele perdesse a cabeça e diabolizasse um documento que é um contributo para uma discussão fundamental para a comunidade.
Razão tinha o André Gide: acredita nos que procuram a verdade, duvida dos que a encontraram.
2. Compreendo muito bem os que tentam sempre arranjar motivos pouco dignos para as ações dos outros. Para eles não há qualquer possibilidade de alguém querer participar na vida pública para contribuir para o bem comum, apresentando ideias ou exprimindo apenas a sua opinião. Existem sempre motivos inconfessáveis, interesses escondidos, venalidades evidentes. Não passa, muito simplesmente, da incapacidade de entender que "essa gente" não é como eles. A propósito, eu faço parte dessa "gente" que subscreveu o manifesto. Com muita honra." (Pedro Marques Lopes - Diário de Notícias)
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