"Temos a sorte, eu e quem me lê, de termos sido contemporâneos de dois colossos. Refiro-me, é claro, a Mandela e a Cavaco. Cada um no seu género, deixam uma marca indelével no seu tempo.
Mandela nasceu num regime que via nos negros uma subespécie e lhes negava, na sua terra, direito de voto ou de sequer frequentar o mesmo WC que cidadãos de pele mais clara. Apartheid queria dizer isso mesmo, um regime de separação em que os negros não eram escravos mas também não eram pessoas. Contra ele, Mandela, advogado de formação, começou por usar a palavra e o exemplo. Quando concluiu que por aí nada mexia, recorreu às armas. Buscou e recebeu apoios de gente e regimes muito pouco recomendáveis, como Kadhafi, de quem se dizia amigo, Fidel e a URSS. Em 1964 é condenado a perpétua, depois de um julgamento no qual explicou a sua opção pela luta armada e a forma como a distinguia de terrorismo (porque, argumentou, evitava vitimar pessoas). Esteve preso 27 anos, saindo com 72, em 1990. Até 2008, não podia entrar nos EUA sem autorização especial, por o seu partido, o ANC, estar listado como organização terrorista.
Como ouso comparar Cavaco a Mandela, perguntar-me-ão. Ora bem: Cavaco, no lugar de Mandela, teria feito muito melhor. Teria sido, explica-nos ele na sua Autobiografia Política, "cauteloso". Como exemplifica na posição que tomou, enquanto primeiro-ministro de Portugal, quando em 1987 se apresentaram na ONU várias resoluções contra a África do Sul: vota, ao lado dos EUA de Reagan e do Reino Unido de Thatcher, contra as sanções económicas, contra a condenação do auxílio militar de Israel ao governo do apartheid e contra a libertação de Mandela numa resolução, votando a favor noutra. A distinção, explicou o atual PR nesta semana, deveu-se ao facto de a primeira resolução defender o direito do povo sul-africano à luta armada, enquanto ele considerava que o "desmantelamento do apartheid" deveria ocorrer "por meios pacíficos, devendo as autoridades de Pretória abrir o diálogo com os representantes da comunidade negra". Muito melhor do que andar aos tiros, com o risco de magoar alguém ou partir alguma coisa, ou até recorrer ao exagero das sanções económicas. Fazia-se cara feia, dizia-se "racista mau, racista feio", e era esperar que eles caíssem neles.
Quando Cameron pede desculpa pela posição do seu país no passado (Obama não precisa, é Obama), Cavaco, admirável de coerência, mantém a sua: luta armada nem pensar; quem o critica é porque "não conheceu Mandela". Ele, que o conheceu, pode ter pedido a libertação de um homem condenado pela luta armada condenando a luta armada. Pode presidir às celebrações do golpe militar (armado) do 25 de Abril, até jurar defender uma Constituição que defende "o direito dos povos à insurreição [armada] contra todas as formas de opressão". Ok. Mas e A Portuguesa? Às armas, às armas? Não podemos fazer isto a um pacifista irrevogável. Mude-se o hino, já. Ou o Presidente." (Fernanda Câncio - Diário de Notícias)
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