sábado, 1 de novembro de 2014

A pesada herança

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"A 16 de Junho de 2011, por ocasião da assinatura do acordo de coligação com o CDS, Pedro Passos Coelho reafirmava aquilo que já tinha repetido algumas vezes em jeito de promessa eleitoral: "Não usaremos nunca a situação que herdámos como uma desculpa para aquilo que tivermos de fazer. Daremos, por uma vez, um bom exemplo de poupar ao país durante meses o exercício de evocar a circunstância que herdámos. O país conhece-a, e conhece-a suficientemente bem para não ter tido nenhuma dúvida quanto à necessidade de mudar e de mudar profundamente". Mais adiante reforçava que o Portugal tinha todas as razões para estar tranquilo porque iria ter um governo que "não se vai desculpar com o que aconteceu antes nem com as dificuldades do presente para entregar o resultado que os portugueses querem receber".
Ao fim de pouco mais de três anos, este compromisso solene - quiçá por preguiça ou patetice - mereceu o mesmo destino de todas as outras promessas, isto é, o caixote do lixo.
Nos últimos dois dias, durante o debate do Orçamento do Estado, lá foi o passado trazido, mais uma vez, para o presente em nome, imagine-se, da pesada herança ou, para citar Paulo Portas, "tal era o pesadelo que vocês [socialistas] nos deixaram".
Por entre fantasmas e assombrações, o vice-primeiro-ministro acabou por confessar que a atual maioria não tinha alternativa senão pedir sacrifícios. Com esta afirmação Paulo Portas descaiu-se e, se dúvidas restassem, fez cair a máscara de Pedro Passos Coelho. Descodificando, aquilo que o líder do CDS está a dizer é que o atual primeiro-ministro, enquanto líder da oposição e candidato à chefia do governo, sabia que aquilo que prometia em matéria de impostos, salários e pensões, a troco de votos em 2011, não era para cumprir e, por isso, mentiu deliberadamente aos eleitores.
Regressando à pesada herança, Pedro Passos Coelho já se tinha revelado um primeiro-ministro igual a todos os outros que o antecederam quando, no passado fim-de-semana, decidiu apontar a jornalistas e comentadores para, como fazem todos, atirar as culpas de eventuais derrotas eleitorais para cima de terceiros. Chegados aqui, ao fim de três anos de exercício governativo, a regra confirma-se.
Vejamos então: será por culpa do governo anterior que o caos se instalou nos tribunais com o crash do Citius, o sistema informático da Justiça? Terá sido por causa do "pesadelo" socialista que ainda hoje centenas de alunos não têm os professores todos colocados e, por isso, não têm aulas? Terá sido por responsabilidade de quem esteve no poder até 2011 que Vítor Gaspar se demitiu de ministro das Finanças assumindo em carta pública que a receita tinha falhado e que, por isso, já não tinha credibilidade para continuar? Serão os governos anteriores responsabilizáveis pelo fracasso constante no cumprimento das metas do défice e pelos erros de previsão na evolução da trajetória da dívida pública portuguesa? E será por delito das anteriores maiorias que a economia não cresceu como prometido pelo primeiro-ministro logo em 2012 e depois em 2013 e que o PIB caiu em nove trimestres consecutivos?
José Sócrates tem, certamente, muitas culpas no seu cartório. Desde logo a de nos ter atirado para os braços dos credores impondo-nos um programa de ajustamento violentíssimo, terapia essa que se aplica aos países em pré-bancarrota como era o caso do nosso. Mas terá sido por agravo do anterior primeiro-ministro que o atual governo decidiu ir muito para além da troika?
Já se percebeu que entrámos em tempo de campanha eleitoral e que há falta de currículo para apresentar, PSD e CDS deitem mão do cadastro do PS, como se este não tivesse sido politicamente julgado nas eleições legislativas de 2011. No próximo ano, o que estará sob avaliação é o desempenho do atual governo e não qualquer outro. E precisamente por isso, seria bom que Paulo Portas, arvorado que está em citador mor da República, se lembrasse ele próprio das palavras sábias de Jorge Luís Borges, que ontem repetiu na Assembleia da República: "Se não conseguem suportar a realidade, pelo menos mudem de conversa".
(Nuno Saraiva - Diário de Notícias)

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