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«Os regimes de incompatibilidades não devem travar os mais bem qualificados, os mais bem preparados de exercer cargos políticos. Já aqui escrevi mais que uma vez que, num país pequeno como o nosso, com pouca gente muito qualificada nos vários setores, corremos o risco de não conseguirmos atrair para a atividade política os melhores. E se a isso acrescentarmos que em Portugal se paga mal aos políticos, percebemos que em breve podemos ter apenas medíocres, e rapazes que apenas conhecem a máquina dos partidos, nos mais importantes cargos.
Não surpreende que as primeiras reações à pouca vergonha demonstrada por Maria Luís fossem no sentido da recuperação de propostas legislativas que basicamente tiravam qualquer hipótese a alguém de arranjar um trabalho decente depois de exercer funções políticas. O equivalente a evitar que gente bem preparada viesse para a política. Eis o primeiro e mais importante contributo da ex-diretora financeira da Refer: a degradação da imagem dos políticos e a colocação da discussão num plano errado e perigoso. Mais um trunfo para o discurso que diz que os políticos são todos iguais, uns malandros que é preciso açaimar.
A seguir, e na sequência, veio o argumento legalista. Argumento, aliás, invocado pela ex-ministra. Segundo essa tese seria preciso, salvo melhor opinião, uma lei que prevenisse a completa falta de sensatez, a ausência de vergonha ou a compreensão mínima das regras básicas de respeito pela informação obtida em determinadas circunstâncias. Não há lei que possa explicar a Maria Luís que ir trabalhar para uma empresa privada com que teve negócios, enquanto o Estado que representava era efetivo proprietário do Banif, não é eticamente aceitável. Como não há lei que possa fazer com que a senhora perceba que o que está de facto por detrás da sua contratação é ter informação privilegiada que só obteve porque era ministra das finanças. Será que Maria Luís pensa que a empresa para onde vai trabalhar ficou impressionada pelo seu desempenho anterior a ser ministra? Ou que os seus cargos como diretora do departamento de gestão financeira da Refer ou de coordenadora do Núcleo de emissões e mercados do Instituto de Gestão da Tesouraria e do Crédito Público lhe trazem conhecimentos que "aportam valor à empresa sobre matérias de enquadramento macroeconómico e regulatório ao nível europeu, sobretudo da Europa continental", como referia o comunicado da empresa para onde vai trabalhar? E não vale mesmo a pena lembrar a ninguém que nunca como nos últimos anos um ministro teve tanta informação sobre o sistema bancário e que o valor que esse conhecimento representa para empresas que atuam no sector da Arrow é incalculável - compra de crédito mal parado, algo que não falta aos nossos bancos.
Não, os políticos não são todos iguais. A esmagadora maioria tem bom senso e conhece os limites éticos que a atividade política impõe. E não, não são necessárias leis que esclareçam o que é a ética e o bom senso. Mas há pessoas que exerceram e exercem cargos políticos que desconhecem estes valores, Maria Luís, pelos vistos, está entre eles.
2. Maria Luís tem razão: o seu comportamento tem uma leitura política. E não apenas no sentido do que devem ser os deveres dum servidor público em relação à comunidade, não só na dimensão do entendimento do mais profundo sentido desses deveres que, como é sabido, estão para além da lei.
A ex-ministra foi uma das principais figuras de um governo que fez do discurso moral perante a crise, da necessidade do sacrifício pessoal em prol de valores mais elevados, do próprio desprendimento do líder em relação a luxos, dos comportamentos austeros, pontos fundamentais da sua narrativa política. Zonas de conforto, pieguices e a luta contra os privilégios dos ricos e poderosos foram verdadeiras pedras de toque.
Digamos que Maria Luís fugiu ao guião. E tendo isso acontecido deixou Passos Coelho com um problema. Ver a segunda figura do seu governo, passados quatro meses, desprezar tudo aquilo que faz parte da sua imagem enquanto político não só é grave para o seu partido - é para ele próprio. Mas, como seria previsível, o ex-primeiro-ministro veio em socorro da sua cara-metade política. Criticar a atitude de Maria Luís seria criticar-se a si mesmo. Maria Luís e Passos Coelho são as duas faces da mesma moeda, a criatura confundiu-se com o criador.
Não admira que tanta gente do PSD esteja profundamente preocupada com as consequências da atuação de Maria Luís e com o apoio de Passos Coelho. O silêncio embaraçado das suas principais figuras são bem prova disso.
O comportamento da ex-ministra tem consequências que serão nefastas, não só para a imagem geral dos políticos mas também, e sobretudo para partido a que pertence e para o líder que a promoveu. No fundo, cai uma máscara. E não é só a de Maria Luís.» [DN]
Autor:
Pedro Marques Lopes.
In "O Jumento"
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