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"Eu tinha 7 anos a 25 de abril de 1974. Sou daqueles que viveram a revolução através dos outros. Vivia no 3.º esquerdo dum prédio em Miraflores, nos subúrbios de Lisboa. No 2.º esquerdo morava a família dum major do exército, na altura destacado em Timor, e no 2,º direito a família dum economista, dirigente do MDP/CDE e posteriormente do PCP, a "trabalhar" em Paris.
Naquela quinta-feira acordei sobressaltado. Não me recordo bem se foram os gritos de alegria da Isabel por pressentir que o José António podia regressar rapidamente de França, se foi o meu pai a berrar por cima chamando à atenção de que podia ser um golpe dos extremistas, se a minha avó a perguntar se o meu tio Manuel podia regressar da Guiné.
Mais umas horas e a confusão no prédio era total. Uma alegria a que nunca mais assisti. Nunca mais vi tantos olhos brilhantes, tanta felicidade, tanto abraço trocado, nunca fui tão beijado e há uma frase que ainda me ressoa na memória: "Isto é para ti, tu é que vais viver toda a vida em liberdade."
Guardo a imagem do meu pai, sempre calmo e pouco dado a euforias, a cantar como um possesso a Grândola abraçado a alguns vizinhos com quem apenas teria trocado uns fugidios bons dias em vários anos. "Já era tempo, já era tempo", dizia. Lembro-me da minha mãe colada ao rádio, de terço na mão, a rezar pelos soldados que cercavam o tipo das conversas em família, o tal que fazia o meu pai ranger os dentes de raiva cada vez que aparecia na televisão.
A sensação que guardo, talvez porque as memórias contadas se foram juntando às de facto vividas, é que aquele dia durou muitos dias, mesmo muitos. Foi, de certeza, naquele mesmo dia que os meus pais me deixaram com a minha avó e foram para a manifestação do 1.º de Maio, o José António regressou, o meu tio regressou da Guiné, que cantávamos sem parar a gaivota que voava, voava, que o pai da Marina saiu de Caxias. Também foi nesse dia que a minha mãe deixou de odiar aquele inspetor que a incitava a não dar a quarta classe às raparigas pobres porque depois faltavam criadas, que o meu pai já se conseguia rir ao contar que teve de pedir autorização ao ministro da Educação para casar com a minha mãe, que os livros que estavam escondidos na despensa foram para a sala.
Vieram outros dias. Chegaram dias em que os meus pais saíram de casa de bandeira do PPD na mão a caminho da Fonte Luminosa sob o olhar reprovador dos amigos de sempre do 2.º direito, em que eu aos 8 anos já era fascista por levar uma foto do Sá Carneiro na lapela, em que vi a minha mãe chorar ao ouvir o pedido de demissão do Spínola, do meu pai insultar via televisão o Vasco Gonçalves, de ouvir os meus pais sussurrar que "se as coisas piorarem" teria de se atravessar a fronteira da Portela de Homem e chegar a Vigo. Os dias daqueles cartazes horríveis da Maioria Silenciosa, dos aviões a rasar o meu prédio a 11 de março, de o meu pai ter de enfrentar piquetes de greve. Outros dias em que glorificámos o Jaime Neves e o Ramalho Eanes e insultámos outros que há um ano tínhamos, se pudéssemos, beijado.
Recordo o olhar vazio de primos que nem eu nem ninguém da minha família conhecia. Fui pela mão da minha mãe buscá-los à Rocha do Conde de Óbidos. Alguns regressavam com pouco mais do que a roupa que tinham no corpo, outros, mais afortunados, com o que conseguiram meter nuns contentores que estavam ali na zona da antiga FIL. Uns ficaram mais dum ano em nossa casa - tornando-a muito pequena -, outros uns meses. Gente estranha. As mulheres fumavam e bebiam whisky. Contavam histórias dum mundo longínquo e paradisíaco, com uma voz entre o saudoso e o revoltado. Ouvi muitas vezes a palavra traição e muitos insultos a pessoas que eram muito respeitadas lá em casa. Os meus pais não os contrariavam. Nunca mais os vi, mas sei que reconstruíram a vida e prosperaram.
E depois dos dias vieram ainda outros dias. Uns melhores, outros piores. Somos nós que os temos feito. Somos nós que os temos construído.
Acertámos muito, errámos muito. Mas fizemos um país mais justo, mais solidário, mais livre. Um Portugal melhor, muito melhor, e, sobretudo, fomos nós que o fizemos.
25 de Abril sempre."
(Pedro Marques Lopes - Diário de Notícias)
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