A terem sido tomadas medidas na altura, esta criança teria hipotéticamente
sido salva. De quem é a responsabilidade?
Se o Senhor existisse, dava-me a mão
Fernando Mora Ramos
A mulher está junto ao tanque, a máquina de lavar não consta dos bens adquiridos de já
casada. Cabelos sem pose, arruivados talvez - a distância não ajuda, o ecrã é pequeno -,
o corpo tenso, meia estatura, um rosto de minhota vindo dos confins célticos do sangue,
um metro e quase sessenta, pálida de brancas faces em rubor intenso. E revolta nos olhos
e palavras. Esbraceja e as mãos procuram no vazio qualquer coisa que não agarram,
perdidas.
O marido, no sofá que teve melhores horas, desolado diz: "Não nos deram nada, trezentos
euros, cabe tudo na cova de um dente. E eu que tenho uns nervos capazes de disparatar,
mato alguém por estar fora de mim, não ser eu. Foi uma dor que nos caiu em cima sem
remissão, ELA está ali e sei que é o fim."
No quarto, a miúda, adolescente aí de uns catorze anos, está entubada, ligada por umas
papas à vida. O rosto parado e como que ali posta para sempre, entregue a um destino
agora sem história: tem a doença das vacas loucas, a célebre doença de Creutzfeld-Jakob.
A mãe diz com uma clarividência corajosa o que raramente ouvimos: "Não, não tenho fé
nenhuma, se Deus existisse, ja me tinha ajudado". O Portugal dos três efes não anda por ali.
E não está para paliativos, nem para psicólogos, nem para assistentes sociais, a sua dor é
sem limite, não necessita de caridadezinha.
Por uma vez e por distracção do censor, interiorizado e não de cargo, a verdade dura
como um soco revela-se. Não há espectáculo. O olhar autêntico desta mãe derruba todas
as razões de Estado e todas as pepineiras sócio -blá-blá do entretém que nos cerca. Estão
irremediàvelmente sós, como muitos outros, talvez como a maior parte de nós.
De quem será a responsabilidade desta morte? A jornalista, esclarecida, afirma o que se
segue por outras palavras: os serviços de saúde portugueses reagiram muito tarde aos
avisos e as medidas efectivas vieram apenas dois anos depois de o perigo estar em acção.
O Estado reagiu ao retardador, acordou muito depois da tragédia ter começado a berrar.
O costume: ritmo burocrático, rotinas sem fio condutor e incapacidade de mando qualificado,
olhar atento e decisões na hora. A terem sido tomadas medidas na devida altura, esta
criança teria hipotéticamente sido salva. De quem é a responsabilidade, diz, rematando?
Por uns minutos a televisão está ao serviço da verdade, não escamoteia, não coloca a coisa
sob o tapete, nem nos atira para os olhos e excesso da "dor" para consumo novelístico e
culpa cultivada. Um documento vivo e tão cru quanto a noção exacta do que está por vir
para aquele casal: a criança vai morrer e eles sabem, e sabem que poderia ter sido evitada.
A sua revolta é uma espinha cravada na garganta dos que mandam, tantas vezes apenas
preocupados com metas financeiras e tamanho de salários. Que tristeza e ao mesmo tempo
que vontade de quebrar a louça necessária para que isto mude mesmo.(Público)
Nota do Papa Açordas: Este é mais um daqueles casos em que o Estado se demite
das suas funções sociais, e daí lava as mãos como Pilatos.
Devemos denunciar estes casos na Blogosfera.
sexta-feira, 16 de novembro de 2007
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3 comentários:
Eu li e fiquei a pensar... revoltado. Não há direito. E, às tntas, nem fé!
escandaloso, este estado dito de esquerda, continua afastar-se dos cidadãos.
Cada vez me desiludo mais... é tudo uma vergonha!
Luz
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