domingo, 20 de setembro de 2015

Enquanto assim for

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"Só mesmo uma enorme falta de respeito pela inteligência das pessoas pode levar alguém a dizer que foi o PS o único responsável pela crise financeira que levou ao resgate, como é completamente falacioso atribuir todas as responsabilidades da vinda da troika ao PSD. O facto é que dadas as circunstâncias não havia outra solução.
Por outro lado, a discussão sobre o chumbo do PEC IV também é espúria. A questão estava longe de ser económica, Sócrates, muito simplesmente, estava esgotado politicamente e nem que de repente chovesse dinheiro em Portugal o governo se manteria.
O país, pura e simplesmente, não estava preparado para resistir à mais grave crise económica internacional das últimas décadas. Talvez nunca se esteja preparado para resistir a um abalo da dimensão daquele. Talvez não se tenha feito desde o 25 de Abril - ou até antes - o suficiente, talvez o euro nos tenha deixado demasiado expostos, talvez tivéssemos confiado demasiado no projeto europeu e nas ordens e contraordens que nomeadamente o último governo foi recebendo ou talvez - o que é o mais certo - seja um cocktail de todas estas razões.
Não há quem não vocifere contra as obras públicas, quem culpe as parcerias público-privadas por todas as nossas desgraças, quem até culpe aeroportos que nunca se fizeram, autoestradas que nunca se construíram e travessias que nunca passaram do papel por a tal bancarrota. Não serei eu a negar que existiram exageros na construção de estradas, na proliferação de pavilhões multiusos, em rotundas, gastos inúteis, gestões ruinosas de empresas públicas e afins. O estimado leitor acrescentará à lista os disparates que conhece tão bem como eu.
Convém, no entanto, lembrar o que está de facto em causa quando falamos do grosso dos gastos do Estado nestas últimas décadas, das faturas que realmente contam e em endividamentos das famílias e das empresas (sendo o problema da dívida destas bem maior do que o do Estado). Por vezes, esquecemo-nos de que é na educação pública, no serviço nacional de saúde, nas pensões, nos apoios a quem fica sem condições de subsistência que o Estado e as suas entidades gastam o dinheiro - não, os carros e as viagens e as supostas mordomias dos políticos não têm o mínimo de impacto, por muito que custe a quem faz discursos com base nesse disparate. Mais, que todos estes sistemas foram praticamente todos construídos nestes últimos 40 anos. E se falarmos em endividamento de famílias temos de nos lembrar de que este resultou de coisas tão básicas como frigoríficos, micro-ondas e desse pequeno pormaior chamado crédito à habitação, ao qual gerações inteiras de portugueses foram obrigadas a recorrer.
No fundo, é a tudo isto que muitos chamaram, e ainda chamam, viver acima das nossas possibilidades.
Há uma pergunta que permanece sem resposta: alguém pensa que temos de dispensar de forma permanente partes importantes da educação pública, saúde, pensões, seguros sociais e/ou que seremos obrigados a ter níveis de vida ainda mais inferiores aos nossos confrades europeus para estarmos preparados para choques brutais como o da crise de 2008?
Muitas vezes se pergunta porque um país que se debate com tantas dificuldades, que expulsa os seus jovens às centenas de milhares, que tem um coro imenso de gente sempre disposta a insultar os políticos, mantém de forma sistemática os mesmos partidos no poder? Porque é que em países com problemas bem menores do que os nossos, como a França e a Espanha, surgem novos partidos, novas propostas políticas, e aqui os partidos do arco da governação PS, PSD, CDS e PCP - sim, o PCP faz parte do arco da governação, talvez melhor, da governabilidade, é o que absorve os choques, o que disciplina a rua - se vão revezando?
Talvez sejamos intrinsecamente conservadores; talvez aceitemos os nossos males endémicos, como a pobreza, a desigualdade ou a emigração, como inevitabilidades; talvez nos tenhamos, num ponto qualquer da nossa história, resignado.
Tenho poucas dúvidas de que estes fatores contribuem para a nossa estabilidade político-partidária. Mas o que é decisivo é a consciência de que o tal arco de governação tem, melhor ou pior, garantido, chamemos-lhe assim, os seguros sociais: a educação, a saúde, as pensões, os apoios em situações desesperadas - vemos, felizmente, a segurança como dado adquirido. Isto, claro está, somado à memória do nosso passado recente - 40 anos não é nada na memória de um povo.
No momento em que o cidadão português achar que um dos grandes partidos, ou os dois, põem em causa esse edifício será também o momento em que o nosso cenário político-partidário muda. A questão é se, sendo o tal edifício alterado, não será apenas uma mudança de partidos que está em causa. Esperemos que sim."
(Pedro Marques Lopes - Diário de Notícias)

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