domingo, 5 de outubro de 2014

Salário mínimo, ignorância e arrogância máxima

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"1 Segundo um indivíduo de nome Simon O"Connor, há uma grande preocupação em Bruxelas por causa do aumento do salário mínimo em Portugal para 505 euros. Escreve o Simon, entre outras boçalidades, que Portugal envia um "sinal errado em relação ao compromisso do governo de manter as reformas estruturais", que o nosso país é "imprudente".
O Simon e a Comissão, por quem fala, não devem saber, mas os trabalhadores portugueses são os que têm o salário mínimo mais baixo da União Europeia - tirando os dos países de Leste que mais recentemente entraram. Ou que depois do aumento fica a mais de 120 euros de distância do grego, o segundo mais baixo. Francamente, esta é a parte menos importante da ignorância, da estupidez ou da insuportável arrogância do Simon e da Comissão Europeia.
É, talvez, mais grave perceber que temos uns tontos que pensam que uma empresa que em Portugal baseie o seu modelo de negócio em salários de 505 euros, numa economia aberta, tem hipóteses de sobreviver no mercado e não tem o seu fim mais do que anunciado. Entendo que se queira transformar Portugal num país de mão-de-obra miserável que produza atoalhados de baixíssima qualidade ou torres Eiffel para vender a um cêntimo cada, mas estou convencido de que há países que serão capazes de pagar sempre menos aos seus homens e mulheres. Ou seja, nem a vontade de nos mandar para o esgoto económico resultaria.
Ia discorrer sobre o tipo de inconsciência e de falta de conhecimento da vida das pessoas que permite a um indivíduo dizer que alguém que recebe 505 euros por 160 horas de trabalho está a ganhar de mais, mas não quero enervar o estimado leitor. Mais grave, talvez, é constatar que o nosso governo foi tão atento e venerador a tudo o que a troika impunha, à superioridade moral dos disciplinadores alemães que representava, à compreensão pelo castigo, à aceitação de ordens sem discussão, que qualquer burocrata badameco acha que pode tecer considerações sobre Portugal. Quem se comporta como um criado, como o nosso governo, será sempre visto como um criado.
O pior é a incompreensão sobre o papel do salário mínimo na Europa. A ligação ao valor essencial do trabalho na construção do projeto europeu. Da defesa da sua importância, da visão do trabalho como parte fundamental da vida do cidadão. O trabalho não ser visto como um fator de produção como os outros, mas como algo de central na comunidade. Sendo o trabalho uma parte do que um homem é e do seu lugar no mundo, não podia ser encarado como um simples bem transacionável: não se vende o trabalho como se vende um pedaço de terra.
O salário mínimo garantiria que quem trabalhasse não seria pobre, estava garantido mais do que a subsistência, era a dignidade de qualquer pessoa que trabalhasse que estaria em causa. Estes valores foram consensuais desde o nascimento do projeto europeu. Não são de direita nem de esquerda, são princípios fundadores.
É provável que o Simon e a Comissão não saibam que em Portugal, mesmo ganhando 505 euros, não se sai da pobreza, que se é pobre mesmo. Mas querem lá eles saber. Bate certo com a folha de cálculo? Então está tudo bem. Era capaz de apostar que estes elementos, no fundo, estão contra a própria existência de salário mínimo. Sem esse anacronismo até se atingiria o pleno emprego, gente disposta a trabalhar por uma malga de arroz. Era logo uma competitividade fantástica.
É esta gente que manda na União Europeia e enquanto assim for nada de essencial mudará. É isso, no fundo, o mais preocupante, o que mais assusta.
2 Abaixo os privilégios herdados, vivam os direitos conquistados. Viva a República."
(Pedro Marques Lopes - Diário de Notícias)


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