domingo, 17 de maio de 2015

Perda de memória, não de valores

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"Conheço bem a ladainha "no meu tempo é que era" e estou cansado de ouvir mui sérios discursos sobre a perda de valores éticos e morais da comunidade, nomeadamente os dos nossos jovens.
A primeira é tolerável. Remete-nos para a nossa juventude, para alturas da nossa vida menos exigentes - não em todos os casos, bem entendido -, tempos de que preferimos lembrar as coisas boas e esquecer as más. No fundo, se aqui chegámos, e bem, o saldo de tudo o que está para trás será normalmente bom. Chega a ser hilariante estar em reuniões de gente da minha idade, rapazes e raparigas quase nos cinquentas, e ouvi-los criticar esta malta que se embebeda pelas ruas, que fuma charros e coisas piores pelas esquinas, que trata mal os professores, que namoram com uns e outros. Das duas uma: ou viveram num planeta que não o meu ou já estão com problemas sérios de memória.
Talvez no planeta deles não existissem cafés, à porta de liceus ou onde quer que fosse, que serviam aguardentes a qualquer hora do dia a um miúdo que qs pedisse ou se não conseguisse comprar um maço de cigarros sem ter ainda um pelo na cara. É provável que não se lembrem de fumar e beber dentro das escolas, de não terem o mínimo cuidado no que ao sexo diz respeito - com os resultados conhecidos -, de terem conduzido carros debaixo da influência de drogas ou de bebedeiras monumentais e, no caso raro de serem apanhados, nada de especial acontecia.
Confesso que há alturas em que não percebo como não aconteceram maiores desgraças.
Comparar o nível de proteção que a comunidade dedica aos jovens de agora, o seu nível de informação, os cuidados que têm com o sexo, só para lembrar estes aspetos, com os do meu tempo é de rir à gargalhada. E nem vale a pena chamar a atenção para o seu nível de conhecimento dos mais diversos aspetos da vida quotidiana e da possibilidade de se informarem sobre os mais diferentes temas.
O discurso da perda de valores éticos, morais ou até civilizacionais dos nossos miúdos deixa-me estupefacto. Era melhor antes? Adorava saber onde se vai buscar essa ideia ou então não estamos a falar da mesma ética, da mesma moral ou da mesma civilização. Vá, façamos um esforço. Eram as raparigas tratadas como iguais, com os mesmos direitos? Havia ou não havia uma moral sexual, por exemplo, distinta para elas e para eles? Não é que a mudança tenha sido tão grande, mas mudou e para muito melhor. E alguém precisa de ser recordado como eram tratados os que não mostravam interesse por pessoas de sexo diferente, os maricas? E quantas cenas do mais violento bullying existiam por esses liceus, átrios, ruas, recreios desta terra? Não se recorda do vidrinhos, do badocha, do orelhas, do tipo a que se dava caldos quando não havia mais nada de interessante para fazer? Alguém se preocupava? Havia alguma chamada de atenção generalizada? Pois.
Há de facto uma grande diferença entre esses tempos e os de hoje: estamos muito mais atentos aos fenómenos perniciosos, à violência, à discriminação. Não que agora essas doenças estejam mais espalhadas, não estão, estão menos, muito menos, mas porque sabemos que as temos de denunciar e combater. Mais, existe a convicção da comunidade de que estão erradas, e antes não havia ou pelo menos convivia-se com naturalidade com elas. Como acontece com outras realidades, como a violência doméstica, para só referir um exemplo mais na ordem do dia.
As imagens dum rapaz a ser maltratado por um grupo de projetos de bandalhos deixou o país em estado de choque - as redes sociais amplificam a humilhação, mas servem também para a consciencialização da comunidade de muitos problemas de que apenas desconfiamos e até para alguma pedagogia; como todas as redes sociais ao longo da história, e serviu, infelizmente, para ouvirmos de novo uns discursos inflamados e despropositados sobre a moral perdida e a falta de valores. A recuperação da vítima e dos agressores é um encargo nosso como comunidade e, claro está, das suas famílias. Aquele horrível filme torna-nos, porém, mais cientes de que a luta contra a violência, a defesa dos mais vulneráveis, a pedagogia da tolerância, o respeito pela diferença, são batalhas que temos de combater todos os dias e que as temos de enfrentar sem esmorecimentos. Aliás, foi bem revelador da preocupação da comunidade com estas situações e da forma como não estamos dispostos a tolerá-las o sentimento de revolta que se gerou.
Convém, porém, não esquecer que os nossos filhos estão muito mais protegidos do que nós alguma vez estivemos e que são muitíssimo mais civilizados do que nós éramos quando tínhamos a idade deles - afinal não fizemos um trabalho assim tão mau. Mas sobretudo que os valores éticos não estão em crise e que estamos bem atentos aos problemas que vivemos. Valha-nos isso e já não é nada pouco."
(Pedro Marques Lopes - Diário de Notícias)


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