domingo, 5 de abril de 2015

O mais importante, por favor

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"A democracia liberal e o Estado de direito são frágeis. Alguns dos seus princípios fundamentais são, em si mesmos, as razões das suas fragilidades. A liberdade de expressão e a própria liberdade de fazer propostas que colidem com esses princípios são alguns exemplos: não há democracia sem eles, mas são também essas liberdades que permitem a defesa e a divulgação de ideias contra os seus mais importantes institutos. Também por causa dessas fragilidades, nunca a sua defesa e a defesa dos seus mais sagrados fundamentos devem ser descurados, mesmo quando parecem estar solidamente instituídos e consolidados.
A ninguém escapará que as épocas de grandes dificuldades económicas são especialmente perigosas - a história europeia do século XX lembra-nos bem disso. Tudo se torna secundário quando não se encontra emprego ou não se consegue sustentar a família e a fome e o desespero tornam os cidadãos bem mais vulneráveis aos vendedores de quimeras. É exatamente nesses momentos que a defesa dos princípios fundamentais da democracia liberal e do Estado de direito deve ser mais intransigente.
Mas não é preciso vivermos situações-limite para que sejam postos em causa esses valores. E, demasiadas vezes, por pessoas eleitas democraticamente e com, provavelmente, as melhores intenções, gente até que ficará muito ofendida se for acusada de ataques à democracia - claro está, a ignorância ocupa aqui um lugar que nunca deve ser desprezado.
Hoje, em Portugal, vivemos um período desses. Em que se põem em causa, de uma forma clara, princípios sagrados do Estado de direito e da democracia liberal. E o mais grave é não serem apenas pessoas que atuam nas margens do sistema, populistas descarados ou anunciantes do apocalipse, é sim esse ataque vir em larga medida de detentores do poder político e judicial.
Não pode deixar de ser considerado arrepiante que um Conselho de Ministros aprove uma proposta que pode conduzir à instituição de uma lista de abusadores de menores e ao acesso a esta por parte de cidadãos - de facto, indiscriminado -, que deputados a possam votar favoravelmente e que o Presidente da República a promulgue. Assusta que toda esta gente não perceba que está a instituir a justiça popular e a decretar penas perpétuas.
Defende-se com todo o desplante a chamada lei do enriquecimento ilícito que, dê-se a volta que se queira dar, mascare-se da maneira que se quiser, será sempre a consagração da inversão do ónus da prova, um atentado ao princípio da presunção de inocência.
Ficamos a saber que o sigilo fiscal não existe. Que a nossa vida aparece no ecrã de um computador de um qualquer funcionário do fisco ou de um estagiário de uma empresa privada, que os mais ínfimos detalhes da nossa privacidade estejam ao dispor de qualquer um. Aceitamos com resignação que nos digam que se vai tratar do assunto ou que se dê a desculpa que o problema já vem de trás.
Assistimos a tribunais superiores a elevar ditados populares a princípios jurídicos, a juízes a escrever que aplicam penas por causa do sentimento popular - esquecendo que é a lei e só a lei que em democracia o pode exprimir -, de condenações por crimes patrimoniais como se de homicídios se tratasse, à constante aplicação da prisão preventiva como se num Estado de direito não fosse absolutamente excecional mandar alguém para a cadeia sem julgamento, jornais são utilizados para julgar na praça pública condicionando inevitavelmente um julgamento justo e imparcial, o segredo de justiça e as escutas tornaram-se banais e aparecem como se fosse a coisa mais normal do mundo por todo o lado.
Enquanto nas questões da lista de abusadores, do enriquecimento ilícito, do sigilo fiscal e noutras situações ainda se ouvem vozes da oposição, nos problemas da justiça o silêncio do principal partido da oposição e do Presidente da República é particularmente ensurdecedor. Mas não só, há de facto demasiada gente esquecida de que o Estado de direito foi instituído para acabar com as arbitrariedades, para, entre outras coisas, proteger os cidadãos de quem detém poder.
Mas o pior de tudo é como a comunidade parece aceitar todos estes atropelos, toda esta ausência de decência, como se o espírito de caixa de comentários dos jornais fosse realmente representativo do sentir dos cidadãos, como se os tais princípios fundamentais fossem facilmente trocados por populismos, como se as pessoas realmente acreditassem que quem defende esses valores não passassem de defensores de abusadores de crianças, de advogados de possíveis criminosos, de gente que deve e por isso teme.
Estão em curso duas campanhas eleitorais, para as legislativas e para Presidente da República, gostava que me prometessem mais respeito pela democracia liberal, que me mostrassem mais conhecimento sobre os princípios fundamentais do Estado de direito, que me assegurassem que não existiria complacência para quem atentasse contra esses valores, viessem esses ataques de onde viessem. Noutras alturas talvez soubesse a pouco, hoje é o que mais me preocupa."
(Pedro Marques Lopes - Diário de Notícias)

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