domingo, 19 de julho de 2015

Desta vez foram os gregos

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"Os tempos favorecem afirmações fortes, definitivas: a "Europa acabou", "as instituições europeias estão mortas", "não há democracia na Europa". Não há quem não faça paralelos com momentos marcantes da história europeia: a humilhação imposta ao povo alemão em Versalhes, ou a lembrança de James Galbraith, na Harpers, da invasão soviética da Checoslováquia em 1968 - que considero especialmente feliz. Infelizmente, todas fazem sentido.
De tudo o que aconteceu há um detalhe que nada traz à discussão: a análise daquela infâmia mascarada de documento que os alemães e seus acólitos, com a cumplicidade de todos os outros, impuseram - desta vez foram os gregos, mas chegará a vez de toda a gente que não se submeter. Digamos que a coisa a que alguns chamam acordo se resume a uma carta em que se insulta, achincalha, goza com um povo inteiro. Será que há sequer uma alma que acredita numa receita que já provou à saciedade não resultar? Que impõe ressarcir um valor para os credores que nem vendendo o país todo se pode alcançar? Será que alguém consegue defender, sem ser à luz da mais feroz vontade de humilhar um povo e de desrespeitar os mais básicos princípios democráticos, cláusulas que impõem decisões a tribunais? O que se pode dizer de um documento que nenhuma das partes acredita que pode ser cumprido?
Não, é evidente que não vale a pena perder tempo com tal enormidade.
Importa perceber, sim, o que se pretende atingir com essa coisa, como é que se pode chegar ao extremo de a propor e, sobretudo, quais são as consequências.
Retomo a lembrança de Galbraith. O império russo, na invasão da Checoslováquia, deixou cair definitivamente a máscara de qual era a sua relação com os países chamados socialistas. Igualmente, o processo grego mostrou claramente que a Alemanha só está interessada na Europa na medida em que os seus países se sujeitem ao que ela acha melhor para a própria Alemanha. As dúvidas que restassem sobre o interesse da Alemanha numa Europa mais integrada e mais coesa desapareceram. As instituições europeias funcionarão ou não na medida em que se submetam aos interesses alemães. A lei do mais forte, agora sem disfarces ou subterfúgios.
Construção europeia, integração, solidariedade, democracia são palavras vãs. Ou melhor, estamos perante um modelo em que se pode ter o euro ou democracia, não os dois.

O euro, a visão e os métodos alemães
Pouco importa se for óbvio que uma dada receita não funciona para uma parte ou partes da Europa, se uma economia se encontra num estado diferente da dos outros, se os problemas diferem. Não importa, há um método e é esse que tem de ser aplicado.
Ninguém ignorava que prescindir de ter moeda própria implicaria perda de soberania, mas o que não nos disseram é que não íamos poder participar nos assuntos que dizem respeito a todos, nomeadamente à própria comunidade onde vivemos, que ficaríamos sujeitos a um diktat. Nem isso, nem que não se poderiam corrigir eventuais problemas num instrumento tão importante como uma moeda comum para Estados soberanos diferentes, sem poder político central, uma inteira novidade. Talvez não estivéssemos na altura interessados em ouvir, talvez muitos povos europeus tivessem tantas esperanças em pertencer à primeira divisão que acharam que valia a pena não fazer perguntas. Mas também é verdade que nos foram escondidas muitas decisões, que resultados de referendos só eram aceites se fossem no sentido desejado por aquilo que achávamos na altura que eram instituições europeias representativas dos povos.
Repito pela enésima vez, esqueçamos as divisões ideológicas clássicas, a esquerda e a direita - aliás, só em Portugal é que meia dúzia de lunáticos consegue ver um pensamento de direita nas posições alemãs; basta lembrar que o ex-ministro das Finanças germânico Peer Steinbruck, um social-democrata do SPD, afirmou querer a saída da Grécia do euro. Não está em causa. Estamos tão simplesmente perante uma forma de pensar, pelos vistos, de um país, dos interesses desse mesmo país e da visão que tem para o papel que os seus vizinhos têm de desempenhar. E não querem discutir o assunto. O problema é se aparece gente que também não quer discutir assuntos, gente que não acredita mesmo nada na democracia, que também prefere a linguagem da força, e talvez doutra força que não a económica. O desespero, a humilhação de um povo tem consequências imprevisíveis.
Confiança é a palavra-chave. Habermas escreveu que a Alemanha numa noite destruiu o capital político que tinha construído em 50 anos. Onde se lê capital político deve ler-se confiança. Confiança, o cimento que transforma um conjunto de pessoas, um conjunto de vários países - no caso concreto - numa comunidade. O que nos permite assumir que uma pessoa, uma instituição, um país atua em função do grupo e não apenas dos seus interesses.
Julgar que se constrói uma comunidade humilhando um povo que se quer parte dessa mesma comunidade é não querer construir comunidade nenhuma. É apenas querer impor a lei do mais forte. Não, não é preciso lembrar que não era essa a Europa que se queria construir."
(Pedro Marques Lopes - Diário de Notícias)

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