"1. Parcerias público-privadas mal negociadas? Rendas excessivas no setor da eletricidade? Demasiadas Autoestradas? Toda a corrupção deste e do outro mundo? Promiscuidade entre o setor público e privado? Leis injustas e à medida? Bloqueador de qualquer mercado nacional? Responsável pela chegada da troika?
Eis Ricardo Salgado. O culpado de todos os males que nos minam. O elemento que uma vez retirado do nosso convívio fará que tudo floresça. Sem ele a nossa economia tornar-se-á pujante, o Estado será incorruptível e exemplar na gestão do bem comum, acabarão os compadrios e amiguismos.
Agora é Ricardo Salgado. Não vale a pena lembrar todos os outros culpados antes dele. Todos os que, sozinhos, conseguiram arrastar Portugal para um terrível destino. Sozinhos, omnipotentes e fonte de todos os males. Males vários, aliás. Recentemente, tivemos José Sócrates como o único culpado da crise; Cavaco Silva, o criador do monstro estatal; Oliveira Costa, até há pouco o único banqueiro que não era sério...
Podemos pensar em várias explicações para este fenómeno coletivo. Será por termos demasiadas vezes a sensação de que a culpa morre solteira, será por uma qualquer necessidade de descarregarmos toda a nossa frustração, incompetência ou impotência num alvo bem definido. Pode ser.
Mas há algo mais nesta constante busca de um bode expiatório, nesta espécie de outro lado do espelho sebastianista: um homem nos salvará e um homem será o responsável por tudo o que foi feito de errado ou está mal. Nunca pensamos como comunidade. Nunca nos questionamos. Nunca tentamos perceber se, por ação ou omissão, contribuímos para aquilo que consideramos ser as nossas desgraças, sejam as de condução política, sejam as que resultam de cataclismos económicos, sejam as criminais.
São sempre "eles" e quando temos um nome, de preferência "um poderoso", fica logo tudo explicado. Andamos o tempo inteiro a dormir, a deixar que decidam por nós, a recusar participar na vida da comunidade para de repente descobrirmos que a culpa do nosso sono era apenas de um indivíduo. Outro. Qualquer.
2. Ricardo Salgado foi provavelmente um gestor incompetente. Será o culpado de um terramoto económico em Portugal, será o maior responsável pela possível falência de muitas empresas e pela perda de muitas poupanças, terá vendido ou mandado vender gato por lebre. Será o responsável por diversas fraudes e crimes - contas adulteradas, corrupção, branqueamento de capitais, fugas ao fisco. Terá sido um dos promotores da promiscuidade entre poderes públicos e privados que, aliás, existe há séculos em Portugal. Terá construído uma rede de influência mais baseada em cumplicidades e esquemas mal explicados do que em competência.
Não serei eu a negar, e já aqui o escrevi, que havia uma maneira de fazer as coisas, própria dos líderes (Ricardo Salgado e José Maria Ricciardi não estavam sozinhos) do Grupo Espírito Santo, que era péssima para a comunidade. Mas uma coisa são atividades subjetivamente lesivas para a comunidade, outra são aspetos de incidência criminal.
Nada fará melhor à comunidade do que um fim, na medida do possível, normal para este império e para os previsíveis e inevitáveis processos judiciais. Que o desmoronamento deste império com pés de papel se processe sem histerias e sem julgamentos populares. Que vão à falência as empresas que não têm capacidade para honrar os seus compromissos; que possam ser ressarcidos os que foram prejudicados; que os culpados paguem até ao último tostão; que fiquemos convictos de que não houve privilégios especiais nem humilhações provocadas por ressentimentos. E, se se provarem crimes, que os vários responsáveis sejam condenados. Nada pior se, mais uma vez, se mandar às malvas o princípio da presunção de inocência e se substituirmos os tribunais por tabloides ou que a justiça não seja justiça mas sim justiceira.
3. Quem há meia dúzia de dias competia para cair nas boas graças de Ricardo Salgado disputa agora o concurso "fui eu quem mais contribuiu para o derrubar" ou "sou eu que consigo culpá-lo de mais desgraças".
O espetáculo está montado: temos velhos revolucionários remoçados apostados em construir as mais diversas teorias da conspiração, temos jornalistas em horário nobre a promover delírios e cabalas de vão de escada. E, claro, não podiam faltar as fugas de "informação" do Ministério Público para os jornais do costume, a divulgação antecipada de diligências processuais e a costumeira fúria justiceira que parece só acordar quando os chamados poderosos já não o são. A novidade é ter aparecido políticos a cavalgar este caso para fins de política partidária interna, como foi o infelicíssimo caso de Eurico Dias do PS.
Não sei se sabem ou não, mas, como sabemos de outros casos, serão estes os que mais contribuirão para uma possível situação em que nunca chegaremos a saber tudo o que se passou neste gigantesco drama."
(Pedro Marques Lopes - Diário de Notícias)
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