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"1 Na quarta-feira passada fiquei a saber que os reformados e aposentados não podem exercer qualquer tipo de funções públicas. E não, não se está a falar apenas de cargos executivos ou similares. Um homem, com quarenta anos de experiência na área dos serviços florestais, não pode integrar uma comissão estatal para estudar os problemas do setor; uma mulher, que toda a vida tenha trabalhado no Serviço Nacional de Saúde, não pode transmitir os seus conhecimentos a quem está agora encarregue de uma qualquer pasta da atividade; um gestor público aposentado está proibido de dar uma conferência numa universidade pública; um ex-quadro de um banco ligado ao Estado não pode ter um programa de patinagem artística na RTP.
Não, nada tem que ver com os problemas financeiros que o Estado português tem: os aposentados ou reformados não podem, pura e simplesmente, exercer qualquer tipo de funções em organismos ligados a entidades públicas, sejam pagas ou pro bono. Muito excecionalmente, e se forem autorizados pelo ministro das Finanças, podem fazê-lo e, mesmo assim, as pessoas ficam desde logo impedidas de receber a reforma. Ou seja, para trabalharem de borla, têm de prescindir da sua reforma...
Não, não há qualquer tipo de engano. Como, provavelmente, o caro leitor, eu também não fazia ideia desta profunda infelicidade e fui para ela alertado por Bagão Félix, no seu espaço de opinião na SIC Notícias - cuja opinião subscrevo e aplaudo. A aberração consta da Lei 11/2014 de 6 de março - diz muito sobre os nossos media e a oposição ela ter passado despercebida.
O anterior diploma, sobre o mesmo assunto, já proibia a remuneração por trabalho, o que já de si era uma infâmia. Um cidadão trabalharia meses a fio, ou semanas, ou o tempo que fosse, a preparar um qualquer documento ou estudo e nada receberia. É assim uma espécie de comunismo 3.0: o trabalho para o Estado tem de ser gratuito, os indivíduos não interessam, o coletivo é tudo. Em frente, demos de barato que a crise justifica tudo, até termos idiotas funcionais ou patetas deslumbrados a fazer leis.
Afinal a questão - ficámos desde dia 6 de março esclarecidos, sabendo que até de borla os reformados e aposentados não podem trabalhar para nada que cheire sequer a Estado - nada tem que ver com os já referidos atuais problemas financeiros do Estado português. Temos assim duas opções: ou achamos que os representantes dos cidadãos, que fizeram e aprovaram esta lei, e o Presidente da República que a promulgou, tiveram um momento de pura cretinice ou pensamos que há aqui um pensamento.
A segunda hipótese, que com boa vontade apelido de pensamento, partirá do princípio de que um reformado ou aposentado é um peso morto para a comunidade. Nenhuma da sua experiência, do seu trabalho de décadas em prol do bem comum (esse estranhíssimo conceito para quem nos governa) pode ser aproveitado pelas mais diversas organizações ligadas ao Estado, que deve ser até criado um cordão de sanidade entre esses inúteis e a coisa pública. Talvez isto venha no seguimento de uma mentalidade, para aí promovida por uns miúdos que conhecem o mundo através de umas badanas de livros e que nunca saíram do conforto de uma escola qualquer, que afirma que foram os mais velhos, esses bandalhos que agora nos roubam o dinheiro em forma de reformas e pensões, a pôr em causa os seus empregos e os seus direitos. Talvez haja um plano pra suprimir uma geração inteira, uns velhos que têm o descaramento de pedir o que lhes é de direito. Talvez haja quem pense que uma comunidade pode subsistir e prosperar sem a desejável transmissão de experiências, dos ensinamentos das vitórias e das derrotas. Que bela comunidade querem construir, ou melhor, será que percebem sequer a ideia de comunidade?
Prefiro a cretinice. Prefiro pensar que, de facto, houve apenas um momento da mais absoluta cretinice que incluiu os governantes proponentes da lei, os deputados que aprovaram este absurdo, e o Presidente da República que a promulgou.
2 A lei acima referida pode, através de um olhar radiosamente otimista, ser considerada apenas um disparate. Já a marcação, em segredo, de um exame aos professores para dali a cinco dias, com o objetivo de evitar qualquer tipo de reação da classe e pondo em causa as vidas das pessoas, é um ato evidentemente nojento, indigno de um governo e desrespeitador dos mais básicos direitos.
Em qualquer democracia minimamente madura, um ministro que se atrevesse a fazer uma coisa destas era imediatamente posto fora do Governo, mas, de facto, já se ultrapassaram todos os limites."
(Pedro Marques Lopes - Diário de Notícias)
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