"Aqueles que são responsáveis pelo resvalar da despesa também têm de ser civil e criminalmente responsáveis pelos seus atos e pelas suas ações." É do Tribunal Constitucional (TC) que fala Passos, o tal que, diz ele, é composto por juízes "mal escolhidos", a quem "falta bom senso", que fazem acórdãos "obscuros" a precisar de "aclaração", tornando "problemática a necessária consolidação orçamental para os próximos anos", e que, para cúmulo, "não foram escrutinados democraticamente"? Só pode, pensa o leitor, arregalando os olhos: "Ena pá, o tipo quer levar os juízes do Constitucional a tribunal. Mas, espera, que tribunal?"
Pois. Acima deste não há nenhum, pelo que não podia ser ao TC, que acusa de tudo e um par de botas, mas sobretudo de querer "governar sem mandato", que Passos queria, quando proferiu a primeira frase citada (em 2010), responsabilizar "civil e criminalmente"; era mesmo a quem governa com mandato. Sim: o primeiro-ministro que se lança, lancinante, sobre o TC por, não sendo "objecto de escrutínio democrático", "invadir o campo da governação", queria juízes a escrutinar o "ter um orçamento e não o cumprir, dizer que a despesa devia ser 100 e ela ser de 300". Ou seja: a julgar a governação.
Estapafurdiamente contraditório, não é? Mas, convenhamos, chegámos ao ponto em que se Passos não for estapafurdiamente contraditório achamos que foi trocado por alienígenas. Veja-se, por exemplo, setembro de 2013: "Nenhum dos acórdãos do TC que chumbou medidas importantes para a reforma do Estado encontrou na Constituição um óbice. Foi por causa da interpretação que o juízes fazem da Constituição. Não é preciso rever a Constituição para cumprir o memorando de ajustamento. É preciso bom senso." Abril de 2010: "Não vale a pena esconder. Há quem pense que com esta Constituição podemos fazer tudo e que só não se veste bem nela quem está de má vontade. Não é assim."
Não há como esconder, realmente. Mas são tantas que esquecem. O "Conselho Superior da República", lembram-se? "Grande proposta" de Passos ao chegar à liderança do PSD, seria "um órgão composto por aqueles que têm durante a sua vida o encargo de julgar os outros e as situações e que mostram no fim da sua carreira que são impolutos e que têm uma vida pública sem mácula", para "ajudar o parlamento", "funcionando como um crivo de idoneidade". E quem seriam estes deuses que Passos frisava "apartidários"? Adivinhou: juízes.
Sim; custa a acreditar, quanto mais perceber. Mas a um tal primeiro-ministro, o que imputa ao TC ambiguidade, obscuridade e falta de senso, não vale a pena pedir aclaração, muito menos nulidade - já no-la deu toda."
(Fernanda Câncio - Diário de Notícias)
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