sábado, 22 de março de 2014

Outro "caso único"

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"1. Vou começar por relembrar o que escrevi nesta coluna no dia 24 de julho de 2010, na altura em que Portugal, com o consenso entre o Presidente da República, Cavaco Silva, e o então Governo socialista, liderado por José Sócrates, cedeu às pressões da Comissão Europeia de Durão Barroso e decidiu fazer parte da, hoje, maioria de países que reconheceu a independência do Kosovo. Passo a transcrever:
"A 17 de fevereiro de 2008, a maioria albanesa do Kosovo, então região da Sérvia, declarou unilateralmente a independência (...) A Sérvia nunca aceitou e pediu a competente decisão do Tribunal Internacional de Justiça, com sede em Haia. Essa decisão chegou agora: não há nada de ilegal, segundo as normas do direito internacional, em que uma região decida separar-se pacificamente do País em que até então esteve integrada. Como facilmente se entende, estamos perante uma decisão polémica, obviamente política, e provavelmente um precedente perigoso, por muito que se chame a atenção para a especificidade da deliberação e os Estados Unidos tenham já afirmado que se tratou de um "caso único". (...) Quando se fala em "caso único", convém descodificar, está a falar-se na resolução de um problema concreto da própria Organização das Nações Unidas (ONU) e dos grandes países que nela detém o poder, como os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e o eixo fundamental da União Europeia formado por Alemanha e França."
E mais à frente acrescentei:
"A dimensão política está estampada nos números da decisão: dez votos a favor, quatro contra, uma abstenção (...) [Esta] foi do juiz chinês, cujo país teme pelo Tibete, pela província de Xianjiang, pela Mongólia interior, etc. Entre os vencidos votou um juiz da Rússia, que receia perder a Chechénia (entre outros territórios) e um de Marrocos, reino com um problema herdado do antigo Sara Espanhol. A Espanha, às voltas com as autonomias cada vez mais exigentes do País Basco e da Catalunha, ficou isolada no contexto da União Europeia, mas alinhou desde o início com a Sérvia, a Rússia (uma diplomacia hipócrita que em sentido inverso reconheceu há pouco tempo a saída da Ossétia do Sul e da Abecásia da soberania de origem, a da Geórgia) e a China. Seja qual for o ponto de vista, este problema do Kosovo, com profundas origens históricas, muito complexo, voltou à atualidade para se tornar sobretudo um caso político global. A partir daqui, em termos abs- tratos, qualquer região pode unilateralmente decretar a sua independência. Esta decisão, que passa infelizmente muito ao lado do interesse da sociedade portuguesa, é marcante e dela ouviremos falar muito nos próximos anos e sob vários pretextos. Quanto mais longe, melhor."
2. Infelizmente, não foi preciso esperar muito tempo. Bastaram menos de quatro anos. Agora é a Crimeia que sai da Ucrânia, não rumo à independência mas à integração na Rússia, de livre vontade e sem surpresa: se a esmagadora maioria dos habitantes da região é constituída por russos, como poderia ser de outro modo?
É claro que para o mundo ocidental, europeu e norte-americano, tudo isto é uma vergonha. Um atentado à ordem internacional. Uma ilegalidade que não passou pela ratificação do Parlamento ucraniano, etc., etc.
Pois...
... Porque no Kosovo passou-se algo de semelhante. Uma maioria étnica, de origem albanesa, agarrou em armas e com o apoio da NATO bombardeou essa mesma ordem internacional que agora se pretenderia ver defendida na Crimeia. O álibi era bom - o da guerra na pós-Jugoslávia, na qual sobressaiu a agressividade da Sérvia e muito crime cometido de ambos os lados -, mas o problema legal era o mesmo. O Parlamento da Sérvia também não ratificou, claro, a independência do Kosovo. Portugal, como sempre, alinhou ao lado dos seus aliados, sem visíveis inquietações de consciência. Hoje já são mais de cem os países que seguiram os seus tutores ocidentais, mas o problema continua lá, quem sabe se não à espera de um acerto de contas algures no futuro.
3. Este caso da Crimeia, em que as razões da Federação Russa são absolutamente compreensíveis para qualquer pessoa que queira pensar pela sua cabeça, conduz-nos à hipocrisia das relações internacionais e ao perigo de precedentes costurados à medida, e sempre sem atender ao Direito, à Justiça e a uma análise fria do que pode vir a acontecer.
A Crimeia é um caso basicamente semelhante ao do Kosovo, em que as "convicções" dos protagonistas mudaram apenas o lado da mesa.
A Crimeia e o Kosovo remetem-nos ainda, e ambos, para o futuro a curto prazo e para regiões muito perto das fronteiras portuguesas. Brevemente a Escócia, na Grã-Bretanha, e, sobretudo, a Catalunha, em Espanha, nos farão pensar se a decisão de Haia, há quatro anos, faz sentido e qual é o preço que a Europa vai ter de pagar pelo egoísmo das suas principais potências, que decidem sempre ao sabor de um insustentável interesse momentâneo.
Estamos, tudo o indica, a caminho de uma nova guerra fria. E neste perigoso percurso de curvas e contracurvas não há bons e maus. Só há oportunismo e interesses, como sempre foi habitual nas relações internacionais. Escusamos, por isso, de brincar à superioridade moral.
Na alocução ao País, Cavaco Silva já falou em "mecanismos de dívida comum". Miguel Frasquilho, pelo PSD, já advoga a extensão a Portugal e à Irlanda das condições do iminente terceiro resgate à Grécia e até fala em "período de carência de juros". Que violência! Os comentadores que diabolizaram o manifesto dos 70 começam a ser abandonados. Coitados." (João Marcelino - Diário de Notícias)

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