sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Viciados no aborto

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"Esta semana ficámos a saber uma coisa escandalosa: desde que foi legalizado o aborto, ocorrem muito mais abortos legais do que quando o aborto era ilegal. Naturalmente, há quem, chocado com este estado de coisas, proponha soluções. A mais óbvia, proposta pelo Governo espanhol, é ilegalizar: não deixa de haver abortos, mas passamos a ignorá-los, só dando conta deles quando morre uma mulher ou é desmantelado um negócio abortivo. E se o Estado pode gastar mais em tratamentos das complicações do aborto ilegal e custos associados, as contas ficam tão clandestinas como os abortos - debaixo do tapete.
Como por cá a legalização resultou de referendo e não há esperança de que repeti-lo dê vitória ao não, a estratégia é martelar a ideia de que o número de abortos legais é "muito elevado", "custa demasiado aos contribuintes", "há muitas repetições" e, cúmulo, "as desavergonhadas que abortam podem meter um mês de licença paga." Tudo para forçar a mudança da regulamentação já que, como a porta-voz Isilda Pegado não se cansa de repetir, agora coadjuvada pelo patriarca de Lisboa, os portugueses "votaram a favor da legalização mas não do pagamento dos abortos pelo Estado."
Ora tendo decorrido seis anos e meio desde a entrada em vigor da lei e estando disponíveis números até 2012, 101 mil abortos por opção da mulher até às 10 semanas equivalem a pouco mais de 18 mil por ano, correspondendo a uma das menores taxas da Europa e abaixo de todas as previsões. A dos adeptos do "sim" - 20 mil, assentando na estimativa-base, 20% dos nados-vivos -; a do então ministro da Saúde, que em janeiro de 2007 disse esperar até 30 mil abortos anuais; a da Plataforma não Obrigado, que, pela voz de António Borges, predizia que a legalização implicaria 30 mil a 46 mil por ano.
Quanto ao número de abortos repetidos, é menos de 1% (dos países europeus que apuram taxa de repetição, somos o que apresenta a menor, atrás de Itália, França e Espanha) e 60% das portuguesas que abortam são mães. Já as infames " licenças por aborto", que incluem os espontâneos e por motivos médicos, mantêm-se abaixo das 5000 anuais antes e após 2007 - em 2012 foram até menos do que em 2005.
Como explicar, pois, a repetição das mesmas falsidades? Se Borges já não pode explicar a sua espantosa previsão, os correligionários desprezam-lhe a memória ao fingir que nunca existiu. Fingem até que não afiançaram que legalizar "custaria ao Estado 20 a 30 milhões de euros por ano" (na realidade custa 12) e que na mesma ocasião a também já desaparecida Maria José Nogueira Pinto não concluiu: "Quem não está de acordo em pagar abortos com os seus impostos deve, obviamente, votar "não" no referendo."
Não, a legalização não induziu nas portuguesas o vício do aborto. Já a taxa de repetição de mentiras entre os seus detratores revela-os completamente viciados - na interrupção voluntária da verdade. (FERNANDA CÂNCIO - Diário de Notícias)

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