domingo, 22 de dezembro de 2013

Estado de direito, apesar de tudo

-
1. Nunca um Governo teve tantos diplomas relevantes para a sua governação chumbados. É difícil perceber qual a verdadeira razão que leva o Governo a insistir em desrespeitar a Constituição que jurou respeitar. O mais provável é ser uma combinação de negligência, vontade de afrontar o texto constitucional, desprezo pelo órgão fiscalizador e desconhecimento do papel da lei fundamental numa democracia.
Quem não se lembra do primeiro-ministro a afirmar que a Constituição nunca tinha dado emprego a alguém ou do vice-primeiro-ministro afirmar que ela não nos tinha livrado de duas bancarrotas ? Ou quando estes dois senhores consentiram e apoiaram ataques a um órgão de soberania por instituições estrangeiras ? Não se pode esperar de gente que tem este tipo de afirmações e esta conduta qualquer respeito pela Lei fundamental. Os sucessivos chumbos só surpreenderão, de facto, os muito distraídos.
2. Apesar de todos os juízes do Tribunal Constitucional terem julgado a lei da convergência das pensões desconforme com a Constituição por violação do princípio da confiança, mesmo assim voltou a ouvir-se a ladainha do costume: é preciso mudar a Constituição. Ouvi, até, respeitáveis directores de órgãos de comunicação social, como o da revista Exame e da direcção do Expresso, João Vieira Pereira, a afirmar que o texto constitucional impedia o corte da despesa e que o texto constitucional devia ter mecanismos de emergência para situações como as que vivemos. Quanto a cortes na despesa, poupo ao estimado leitor a leitura da lista dos já realizados, em salários e prestações sociais, que o Tribunal não reprovou. Mas o que gera perplexidade é perceber que há pessoas - respeitadoras e amantes da democracia, com certeza - que pensam que um dos princípios que está na base do Estado de direito, o da confiança, que exige uma previsibilidade mínima na relação do Estado com os cidadãos, possa estar sujeito a uma qualquer emergência económica. Não há uma única Constituição duma democracia liberal que consinta na suspensão do princípio da igualdade, confiança ou proporcionalidade em função dum problema económico. Ou seja, que consinta a suspensão do Estado de direito.
Eu sei que já cansa repetir, mas, pelos vistos, há quem não tenha ouvido ou não queira ouvir: não têm sido normas constitucionais promovidas pelo ambiente revolucionário (que aliás há muito foram retiradas da Constituição nas suas várias revisões), nem delírios esquerdistas, que têm suportado as deliberações do TC, são princípios comuns a todas as democracias e Estados de direito.
3. Há três semanas, escrevi neste espaço que estava convencido de que o Presidente da República iria suscitar a fiscalização preventiva da constitucionalidade do Orçamento para 2014. Foram demasiados chumbos anteriores e há demasiados indícios de que este também tenha inconstitucionalidades em normas fundamentais para a sua coerência. Como Cavaco Silva escreveu no pedido de fiscalização do diploma sobre a convergência das pensões, é muito provável que também no documento com a proposta orçamental exista "conduta furtiva" do legislador, "legislação sacrificial" e o Estado esteja a deixar de desenvolver "comportamentos capazes de gerar nos privados expectativas da sua continuidade". Em muitos aspectos, esta argumentação do Presidente podia ser usada para um pedido de fiscalização do Orçamento.
Hoje, penso que ainda há mais razões para que Cavaco Silva o faça. Para o Presidente a estabilidade é um bem em si próprio. Não há valor que mais respeite. Ora, se já havia um clima de fortes dúvidas sobre a não inconstitucionalidade do Orçamento, mais ficou reforçado com a última deliberação dos juízes do Palácio Ratton. Está instalada a dúvida. Vamos - nós, os mercados e os nossos credores - viver sem saber se lá para Março ou Abril o edifício orçamental vai ruir ou não. Serão decisões dos cidadãos e empresas adiadas, os mercados em suspenso. Mais, tudo o que for negociado para o plano cautelar (que evidentemente existirá) pode ter de ser mudado.
O Presidente não consentirá que vivamos num ambiente de tanta instabilidade durante tanto tempo.
4. Para não variar, a reacção dos responsáveis políticos dos partidos do Governo conteve o habitual: "Respeitaremos integralmente as deliberações do Tribunal Constitucional." Mas não há ninguém que chame à atenção para tão descabelada declaração? É para nos informar que estiveram a pensar e que afinal decidiram não fazer um golpe de Estado? Convinha pensar só um bocadinho antes de falar" (Pedro Marques Lopes - Diário de Notícias)

Sem comentários:

Enviar um comentário